quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A HONESTIDADE

É o princípio pelo qual me rejo: será  (assim  o espero), aquele pelo qual sempre me regerei. No entanto, bem vistas as coisas, não me tem trazido nada de bom.
Leva-me a confiar nas pessoas, a não ver segundas intenções quando se oferecem para me ajudar: basicamente ofusca-me. Na verdade nunca gostei daqueles que “estão sempre de pé atrás”, mas tenho de reconhecer a utilidade dessa atitude. E a cegueira da minha…
Então qual a vantagem de ser honesta? Em termos biológicos qualquer comportamento cujas consequências levem os seus possuidores a serem mais bem sucedidos pode ajudar a mantê-los na população. Ora o que me é dado ver é que os mais bem sucedidos, e por consequência os que se podem manter melhor na sociedade, são os outros, os desonestos, ou se quisermos ser mais suaves, os menos honestos. Isto quer dizer que estou longe se poder ser considerada um animal óptimo, uma vez que repito comportamentos que não me conduzem ao sucesso. E novamente me pergunto porquê.
Claro que é sempre possível argumentar que estamos longe de ser animais semelhantes aos outros, digamos, aos outros mamíferos superiores que povoam este planeta, e que não faz sentido para o animal racional que somos, a procura incessante de uma razão biológica para as suas atitudes. No entanto, quando de facto nos metemos ao caminho na procura da, chamemos-lhe assim, biologia das atitudes, e nos deparamos com os meandros da dita sociobiologia, podemos assustar-nos um pouco. Podemos verificar que, em várias situações, nos assemelhamos demasiado (pelo menos muito mais do gostaríamos) aos nossos parentes do reino animal.
Mas voltando à minha teimosia em manter-me honesta. Porque é que se mantém, mesmo após a constatação de ter sido, e continuar a ser, um caminho que não leva a lado nenhum e biologicamente pouco recomendável?
O único argumento que encontro é a velha discussão sobre o que poderemos considerar o sucesso. É usar os lugares comuns do que o que interessa não é o que conseguimos obter mas o que fazemos pelos outros, pelo bem comum. Funciona, mas confesso que é uma argumentação um bocadinho deteriorada, dado o excesso de uso que lhe tenho dado. Ou então acreditar que, numa outra qualquer dimensão, alguém está a tomar nota das minhas boas intenções e do afinco com que continuo a praticar a honestidade, acreditando que é assim que vale a pena. Espero que pelo menos, esse omnipresente personagem, não se esteja a rir de mim…



domingo, 27 de novembro de 2011

POEMAS (Palavras I e II)

Se as palavras fossem feitas de silêncio
serenas deslizassem como lágrimas
se caladas pronunciassem o sentimento
desfeitas no sorriso que se escapa
eu as escreveria com alento
pois mesmo frágeis
saberiam trazer de cá de dentro,
como escrita transparente,
toda a confusão que experimento.

Se as palavras fossem feitas de silêncio
não trariam a dor soletrada em cada sílaba.

***

Sê breve
pois as palavras
não são apenas sons
muito menos música.
As palavras
são armas
medo do silêncio.
Às vezes ternura,
só o gesto
toca o coração.

Tinha – o revisitar de más memórias

Entre o cheiro a enxofre, a tintura de iodo, a pinça que arrancava cabelos, a touquinha e a vergonha de ir para a escola, serão muitos os que ainda se lembram desta doença, que tanto atingiu as crianças há 50-60 anos atrás.
Causada por fungos, e por isso de fácil transmissão, quer por contacto directo, quer pela partilha de um pente, boné, atingiu uma grande parte das crianças em idade escolar. E as condições de vida da época, difíceis, facilitavam ainda mais a sua propagação, atingindo a doença, frequentemente, todas as crianças da família.
Ora, na época, não havia tratamento específico; o anti-fúngico que depois surgiu, a griseofulvina, ainda não tinha sido descoberto. O tratamento possível consistia em colocar, alternadamente, a pomada de enxofre e a tintura de iodo. A pomada empastava o cabelo e ficava difícil o seu acesso às lesões. Claro que o cabelo era previamente cortado, rapado, mas teimava em continuar a crescer, o que diminuía a aderência ao tratamento e, por conseguinte, a cura.
Houve a ideia de usar um tratamento mais eficaz, já em uso noutros países – fazer cair o cabelo com uma dose elevada de raios X, a mesma radiação das radiografias e na época tão utilizada em vários tratamentos médicos. E os mesmos se lembrarão do famoso “capacete”, alguns de náuseas, e a maioria de ver cair o seu cabelo às mãos cheias, até a cabeça ficar “como a palma da mão”. E assim ficava durante algumas semanas, tempo geralmente suficiente para erradicar o problema. Só mais tarde se começou a verificar que esta dose de raios X, aplicada na maioria dos casos a crianças, poderia ter eventuais efeitos secundários.
A circunstância de um investigador ter tido acesso aos registos do antigo Dispensário de Higiene Social do Porto (à Carvalhosa), onde constava o nome das crianças irradiadas, a dose de radiação, a idade e a data do tratamento, levou a que tivéssemos iniciado há cerca de 4 anos a busca incessante dessas pessoas. Usámos a lista telefónica, as Juntas de Freguesia, diversas bases de dados do SNS, informações de família e amigos. O nosso objectivo era, e assim continua a ser, fazer a sua observação clínica, fazendo o despiste de situações eventualmente relacionadas com a irradiação sofrida.
Das 5358 crianças presentes no registo, encontrámos 1800 – 1200 foram consultadas, 300 tinham já falecido e as restantes emigraram ou recusaram participar. Enviámos cartas a mais 1700, sem resposta – não sabemos se encontrámos a pessoa certa. Faltam cerca de 1850 pessoas que nunca conseguimos contactar.
Mil e duzentas pessoas vieram à consulta. Alguns com medo, outros por curiosidade, outros para contar a sua história. Pudemos observar 25 casos de cancro da tiróide, 11 dos quais nunca antes diagnosticados. As lesões de pele também foram um acontecimento frequente: 76 pessoas tinham 1 cancro de pele, 21 dos casos diagnosticados por nós. Também encontrámos 4 casos de excesso de funcionamento de uma paratiróide (uma glândula que quando trabalha em excesso retira o cálcio dos ossos), que foram resolvidos.
Não é possível voltar atrás e apagar o que foi feito. Nunca é. Mas é assim que todas as histórias se constroem. Fez-se o que se podia com o que se conhecia. Mas pode-se olhar para a frente e lutar para que todas estas crianças, hoje adultos, possam ser devidamente acompanhadas do ponto de vista clínico. É esse o objectivo.