domingo, 27 de novembro de 2011

Tinha – o revisitar de más memórias

Entre o cheiro a enxofre, a tintura de iodo, a pinça que arrancava cabelos, a touquinha e a vergonha de ir para a escola, serão muitos os que ainda se lembram desta doença, que tanto atingiu as crianças há 50-60 anos atrás.
Causada por fungos, e por isso de fácil transmissão, quer por contacto directo, quer pela partilha de um pente, boné, atingiu uma grande parte das crianças em idade escolar. E as condições de vida da época, difíceis, facilitavam ainda mais a sua propagação, atingindo a doença, frequentemente, todas as crianças da família.
Ora, na época, não havia tratamento específico; o anti-fúngico que depois surgiu, a griseofulvina, ainda não tinha sido descoberto. O tratamento possível consistia em colocar, alternadamente, a pomada de enxofre e a tintura de iodo. A pomada empastava o cabelo e ficava difícil o seu acesso às lesões. Claro que o cabelo era previamente cortado, rapado, mas teimava em continuar a crescer, o que diminuía a aderência ao tratamento e, por conseguinte, a cura.
Houve a ideia de usar um tratamento mais eficaz, já em uso noutros países – fazer cair o cabelo com uma dose elevada de raios X, a mesma radiação das radiografias e na época tão utilizada em vários tratamentos médicos. E os mesmos se lembrarão do famoso “capacete”, alguns de náuseas, e a maioria de ver cair o seu cabelo às mãos cheias, até a cabeça ficar “como a palma da mão”. E assim ficava durante algumas semanas, tempo geralmente suficiente para erradicar o problema. Só mais tarde se começou a verificar que esta dose de raios X, aplicada na maioria dos casos a crianças, poderia ter eventuais efeitos secundários.
A circunstância de um investigador ter tido acesso aos registos do antigo Dispensário de Higiene Social do Porto (à Carvalhosa), onde constava o nome das crianças irradiadas, a dose de radiação, a idade e a data do tratamento, levou a que tivéssemos iniciado há cerca de 4 anos a busca incessante dessas pessoas. Usámos a lista telefónica, as Juntas de Freguesia, diversas bases de dados do SNS, informações de família e amigos. O nosso objectivo era, e assim continua a ser, fazer a sua observação clínica, fazendo o despiste de situações eventualmente relacionadas com a irradiação sofrida.
Das 5358 crianças presentes no registo, encontrámos 1800 – 1200 foram consultadas, 300 tinham já falecido e as restantes emigraram ou recusaram participar. Enviámos cartas a mais 1700, sem resposta – não sabemos se encontrámos a pessoa certa. Faltam cerca de 1850 pessoas que nunca conseguimos contactar.
Mil e duzentas pessoas vieram à consulta. Alguns com medo, outros por curiosidade, outros para contar a sua história. Pudemos observar 25 casos de cancro da tiróide, 11 dos quais nunca antes diagnosticados. As lesões de pele também foram um acontecimento frequente: 76 pessoas tinham 1 cancro de pele, 21 dos casos diagnosticados por nós. Também encontrámos 4 casos de excesso de funcionamento de uma paratiróide (uma glândula que quando trabalha em excesso retira o cálcio dos ossos), que foram resolvidos.
Não é possível voltar atrás e apagar o que foi feito. Nunca é. Mas é assim que todas as histórias se constroem. Fez-se o que se podia com o que se conhecia. Mas pode-se olhar para a frente e lutar para que todas estas crianças, hoje adultos, possam ser devidamente acompanhadas do ponto de vista clínico. É esse o objectivo.

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