quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Doença – ao que nós chegamos…

Somos o que nos habituámos a ser. E aquilo que conhecemos, de nós mesmos, e do mundo, traz-nos segurança.
Quando mais nada preenche os nossos dias, a não ser as rotinas do corpo que julgávamos possuir, a isso nos agarramos.
Não queremos mudar. Os velhos hábitos, agora inimigos do nosso bem-estar, são todavia o que resta da nossa comunicação com o mundo. Por isso os conservamos, como uma qualquer forma masoquista de afirmação, o único poder que ainda sentimos possuir.
É uma ilógica tirania, que sobretudo martiriza aqueles que mais amamos. E sabemo-lo. Mas, numa dualidade que não conseguimos resolver, a ela recorremos para continuarmos vivos.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Deixar partir

O mais difícil é deixar partir.
Os filhos, que já ganharam vida própria ainda antes de saírem de casa. Os pais, que arrastam as suas dores porque o corpo chegou ao fim. As palavras, que um amigo disse de forma agressiva num momento de desacordo.
Queremos controlar, agarrar, fazendo de tudo tábuas de salvação, como se fossemos náufragos.
Bem faríamos em deixarmos de esbracejar, na tentativa de não nos afundarmos. Apenas flutuarmos na maré.


sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Saída de campo


Estávamos no 5º ano do curso, aprendizes de feiticeiro quase a ganhar a varinha de condão, acalentando o sonho que nos abriria as portas do futuro. Um futuro que passaria por células, invertebrados, peixes, quiçá qualquer coisa de interessante que poderíamos vir a descobrir.

Da disciplina de aquacultura fazia parte o cuidar das trutas. Numa casa da faculdade, situada junto às águas serenas da barragem do Gerês, situava-se a estação de criação destes peixes.

O acesso ao local era difícil, através de um caminho estreito e sinuoso, em terra batida. Tão estreito que era à justa para permitir a passagem da carrinha que nos transportava.

Por isso mesmo o motorista, o Sr. Jorge, tinha ordens superiores rigorosas quanto a deixar a carrinha junto à estrada. Essa ordem, se bem que especialmente pertinente nos dias de tempo mais agreste, era também mais tentadora de incumprir nesses mesmos dias. Contrapunha-se, no prato da balança, o perigo de aluimento contra um  caminho longo, mais longo ainda para quem carregava bagagem e lutava contra a chuva.

Nessa ida, única em que participámos, íamos quatro alunos – o Rui, o Pedro, a Gabriela e eu – e, além de nós e do Sr. Jorge, dois professores. E lá seguimos na carrinha através do caminho proibido, que estava deveras enlameado em consequência das chuvadas dos dias anteriores.

Até meio do percurso a odisseia correu bem, tendo do lado esquerdo um muro e do lado direito o declive que conduzia directamente à albufeira. Só que a dado momento o terreno cedeu, cansado de tanta água acumulada, e a carrinha começou a tombar para a direita em direcção à água turva.

Foi a única vez que me apercebi da proximidade da morte, todavia foi tudo tão rápido que não cheguei a sentir um verdadeiro susto. Houve uns gritos, algum alvoroço e instintivamente inclinámo-nos para a esquerda.

Tivemos sorte. Ainda que fora da vereda, e inclinando-se perigosamente em direcção ao declive, as rodas acabaram por prender-se nalgumas pedras, e a carrinha não capotou água adentro. Refeitos do sobressalto, nem nos mexíamos, sentindo metade do veículo como que a levitar.

O Sr. Jorge recuperou a calma e conseguiu sair. Lívido, avaliou a situação e instruí-nos para sairmos lentamente um de cada vez. Nas rugas pesava-lhe a desobediência e a constatação que mais tarde ou mais cedo teria de se justificar. Funcionário dedicado, receava poder vir a perder a confiança do seu superior.

Não havia telemóveis na época (há cerca de trinta anos atrás), por isso fizemos a pé o resto do percurso até à casa, onde a D. Deolinda nos esperava. A D. Deolinda, moradora da casa mais próxima da da Faculdade, era, por assim dizer, uma espécie de caseira. Era ela quem ia olhando pelas instalações e quem, para nosso contentamento, preparava as refeições. E foi da casa dela que o Sr. Jorge telefonou para chamar um reboque, pois a carrinha já não tinha qualquer hipótese de sair dali por sua conta.

Nós éramos jovens, o susto tinha passado, e as decisões sobre a carrinha já não nos diziam respeito. Queríamos na verdade começar o trabalho que viéramos fazer. Sendo os únicos quatro alunos que tinham escolhido o ramo científico do curso na área da Zoologia, parecíamos quase uma família. O Rui e o Pedro tinham entrado no curso um ano antes de mim, a Gabriela quatro anos antes, e para eles o professor Afonso era sobretudo um colega, pois acabara o curso no ano anterior. Este era o seu primeiro ano como assistente estagiário e foi ele quem nos acompanhou nas tarefas da aquacultura.

A casa estava gelada, e nem mesmo um ventilador em cada quarto conseguia aquecer o frio daquela manhã de Janeiro. Instalámo-nos, as raparigas num quarto, os rapazes noutro, aí colocando os sacos cama e a nossa bagagem.

Junto à casa existia um barracão onde era feira a criação das trutas desde a eclosão do ovo, com vários tanques onde nadavam vigorosamente alevins (vulgo trutas bebés) em diferentes fases de crescimento. Na albufeira, não muito longe da margem (mas com acesso de barco), viviam as trutas adultas, em quatro grandes redes que pendiam de estrados de madeira. Eram alimentadas automaticamente. Com a precisão dada pelo relógio, a porta do depósito de granulado abria duas vezes põe dia, de manhã e à noite. E era ver as trutas a saltar desesperadamente, atropelando-se umas às outras, para obterem a única recompensa daquele confinamento forçado.


Depois de nos acomodarmos e de calçarmos as botas de borracha começámos as nossas tarefas. Primeiro as jangadas. Os estrados escorregadios requeriam alguma habituação pois, carregados de limo devido à humidade permanente, mais se assemelhavam a um ringue de patinagem. A Gabriela, mais pesada e com dificuldade de se equilibrar, chegou mesmo a dar um valente trambolhão.
Sob as orientações do Afonso fomos manipulando as trutas. Retirávamo-las estrebuchando do seu refúgio, usando um camaroeiro. Depois eram obrigadas a acalmar-se, num balde com anestésico, para que se tornassem menos fugidias. Tínhamos de ser rápidos porque, ainda que calmas, não podiam prescindir do oxigénio que só a água lhes podia fornecer. Eram observadas à procura de eventuais habitantes indesejáveis, cuja identidade teríamos de recordar das aulas de patologia. Enquanto um de nós as media, outro registava os dados obtidos.

Com as trutas mais adultas havia outra tarefa a executar. Para obter novos recrutas para aquelas jangadas, era necessário recorrer à inseminação artificial. A descendência não podia ficar assegurada da forma biologicamente prevista, através dos encontros amorosos praticados há milhares de anos. Suspensas, e limitadas pelas redes, as trutas não tinham espaço para a fecundação. Assim, quer os machos quer as fêmeas, eram periodicamente retirados para a colheita dos seus bens mais íntimos. Com a facilidade da experiência adquirida, o Afonso mostrou-nos como pressionar suavemente o abdómen para obter, conforme o caso, o esperma ou os ovócitos. Mais tarde a mistura mágica seria feita no anexo da casa, proporcionando a esperança de uma nova geração de alevins.

E assim passámos aquele dia. Estava frio mas estávamos contentes por participarmos naquelas tarefas de aquacultura. No dia seguinte havia outro trabalho a fazer – a montagem de uma zangada flutuante na barragem de Vilarinho das Furnas.

Lá fomos na carrinha, já operacional depois do acidente, armados em “engenheiros civis”. A jangada, conhecida como jangada sueca, era constituída por uma armação metálica, rede e bóias cor-de-rosa. Primeiro teve de ser montada em terra, o que nos permitiu relembrar os jogos de construção da infância. Depois, usando um barco de borracha, era arrastada para o seu local definitivo, não muito longe da margem.

Esta actividade ocupou-nos toda a manhã e gelou-nos até aos ossos. Os meus pés estavam tão frios, que era penoso movê-los, e tive de os aquecer em água quente quando voltámos à casa. O almoço foi trutas e, apesar de elas serem o motivo do nosso trabalho, ninguém se sentiu antropófago e todos as saboreámos com o prazer de um apetite voraz.

À tarde deambulámos pela zona da casa, arrumámos o material e preparámo-nos para o regresso, pois as noites começam precocemente no mês de Janeiro. Voltámos no veículo onde tínhamos sentido ameaçada a nossa existência, que não havia descido até à casa durante o resto da nossa estadia.

Estávamos cansados, mas satisfeitos, porque não há nada como o trabalho prático para nos fazer amar a teoria.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Farrapo humano


Porque te conheci, noutro tempo, noutra vida, os olhos ainda azuis de água, e os caracóis de príncipe, não consigo agora olhar-te.

Magro, trémulo, os olhos azuis de água perdidos nas rugas fundas, tão precoces. Sempre nos mesmos sítios, a ver passar os dias, a pedir para matar a fome, ou a ressaca.

E a única coisa em que eu consigo pensar, evitando ver o farrapo em que te tornaste, é como ainda estás vivo.