SONO

Estou a começar a acreditar que existe uma quantidade fixa de sono para os milhões de pessoas deste planeta. Assim sendo, quando um começa a dormir melhor, há que limitar o sono de um outro, que é forçado a abdicar sem aviso prévio. Pelo menos é o que acontece cá em casa. Mas neste caso, de bom grado cedo a minha parte.

Talvez funcione assim com tudo e por isso se fala na unidade do universo.

IMPACIÊNCIA

- Nunca mais chega Agosto.

- Nunca mais chegam as férias.

- Nunca mais é sexta-feira.

Mas nesta corrida insana da vida, nesta vã tentativa de abreviação do presente, não se ouve dizer: “Nunca mais chega a morte”.

SEMÂNTICA

- É um homem sério.

- Sim, ele sempre foi muito honesto.

- Não. Sério porque nunca se ri.

- Palavra? Se calhar foi a honestidade que lhe tirou a vontade de rir.

ORTOGRAFIA

Há um que desapareceu e outro que desapraceu. O segundo tinha mais pressa, levou com ele a letra a.

UNIDADE - II

E assim nos revemos como parte de um mesmo universo, quando uma batata-doce nos exibe as veias, como se pedisse que lhe tirasse sangue mesmo sem garrote.

RETRATO-III

Mais dolorosa a fotografia do que a memória. Mais dolorosa a fixidez do cansaço no olhar sempre presente. Porque na memória misturam-se rostos e frases, inventam-se sorrisos mesmo nos dias de tristeza.

Painel de Dario Boaventura 

PALAVRAS - XVII

Há palavras difíceis de levar a sério. Como a palavra quezília, que mais parece uma conversa de amigos do que uma verdadeira disputa. Como pedinchar, em que o pedido mais parece um lamento.

Até mais ver

Adeus, Holanda. Fica sempre um bocadinho de mim nestas idas e vindas. Fica sempre uma lágrima que não rola, na distância que se impõe, e que a tecnologia mitiga.

Trago sorrisos e abraços, canções e alinhavadas refeições, ambientes que se fizeram meus. Conheço odores e rostos, locais onde vives, e este caminho que se partilha.

Se temos a tão portuguesa saudade, também temos os inquebrantáveis laços que resistem a qualquer adeus.

PAPOILAS - II

Na simplicidade amarrotada de vermelho salpicam os campos. E sem rodeios oferecem o contraste dos seus tesouros.

TECNOLOGIA

Torna-nos globais, numa ilusão de conectividade, distraídos, perdidos de olhares, de toques, intrometidos em vidas alheias. Sem pudor, afasta quem está próximo, mas reúne, num outrora impossível convívio, quem está distante.

A dúvida e a certeza

A dúvida ainda não sabe

De que cor o mar se abre

Se avança ou se recua

Para que serve uma gazua

Se deva rir ou chorar

Se um estranho pode abraçar

A certeza não percebe

As letras com se escreve

A palavra indecisão

Seja alegria ou desgraça

A certeza não se passa

Já tirou a conclusão

A dúvida também duvida

Das certezas da certeza

Seque a sua natureza

Tantas vezes dividida

Vai levando a sua vida

Sem ilusões de grandeza

Bom dia

- Há gente que precisa de um bom dia.

- Toda a gente precisa de um bom dia.

- Há gente que precisa mais. Um bom dia daqueles que vêm da alma do outro, daqueles que podem realmente iluminar o teu dia.

RECOMEÇO

Há dias em que me lembro

do que já não conhecia

e recebo o mesmo espanto

ainda mais alegria

do que quando o descobria.

GESTO

Que se economizem as palavras, mas não o gesto.

COR

As coisas nunca são tão negras como as pintas nos dias sem cor.