quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Ano Novo - II

Gostava de fazer tudo antes dos outros. Por isso, logo de manhã bem cedo, acertou o relógio pela hora da Nova Zelândia.

Ano Novo

Um ano novinho em folha
Falta pouco para estrear
Também não temos escolha
Porque este está a acabar.

O que vem como será
Não temos como saber
Cremos que nos trará
Alegria de viver.


terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Centro de saúde - conversas de sala de espera

- Está a morrer? – Pergunta o primeiro que se sentou à que acabou de chegar.
- Se eu estivesse a morrer não estava aqui!
- Eu não disse que estava morta, disse está a morrer.
- Mas se eu estivesse a morrer também não estava aqui!
- Nunca se sabe...
Chega outro senhor: um fumador. Diz-lhe o primeiro:
- Fumar mata. Diz nos maços.
- Há quantos anos os maços dizem isso? E eu ainda não morri! Ainda agora fui operado à coluna.
- Quem sabe se o fumo vai e  se entranha na coluna? Eu dizia aos outros: eu sou higiénico e eles ficavam lixados.

Com muita pena minha fui chamada para a consulta; não pude saber como terminou a conversa.

domingo, 28 de dezembro de 2014

COISAS

Não me fales de coisas comezinhas. Para as coisas comezinhas basta-me a inutilidade dos dias.  Fala-me do inatingível. Dos pássaros quando adormecem. Da luz nos dias sem sol. Do mistério dos encontros improváveis. De coisas comezinhas: não.

sábado, 27 de dezembro de 2014

ALERGIA

A alergia é um espalhafato de mucosas aflitas, uma reacção alarmada a coisa nenhuma, em que a panóplia das defesas ataca sem critério, sempre com receio de um ataque em larga escala. Tal é o medo da invasão, do desrespeito das fronteiras que, num cenário circense, descarregamos as armas sem qualquer laivo de boas maneiras. Com tamanho exagero, não garantimos saúde, mas caminhamos pacatamente para a autodestruição.


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

MENOPAUSA - IV

Na menopausa o cérebro feminino, quem sabe atingido pela falta de hormonas, ou por algum trauma de infertilidade, vai perdendo a sua versatilidade de multitarefas.
Aos poucos, a mulher, habituada a gerir várias coisas em simultâneo, começa a sentir-se mais como o seu parceiro que sistematicamente lhe dizia: diz-me uma coisa de cada vez.
Na ausência das crias  e perante a inutilidade do modo multitarefa que tal abandoná-lo sem mais delongas?

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

FUNERAL - III

Era um dia triste de Inverno marcado pela inutilidade das flores. Brancas: disse. Sempre quis que fossem brancas as flores da despedida. Brancas: as flores que não despertam sorrisos. Pálidas como os rostos: que já não são rostos.





terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Os dias não são todos iguais

Há algo de poderoso nas datas. Mesmo que não nos lembremos das pessoas com dia marcado. Mesmo que as memórias sejam frases, odores, e brotem, de forma inesperada, da fragilidade de outros rostos.

E nessas datas, que nos violentam, sabemos que os dias não são todos iguais.

Painel de Dario Boaventura

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Carinho e luz – Lar da Gafanha do Carmo

Tudo se capta no gesto. No abraço: onde a ternura se demora à chegada dos utentes. Onde o sol, que franqueia as amplas janelas e as múltiplas claraboias, se derrama em todos nós. 


domingo, 21 de dezembro de 2014

A mente

O que mais diverte a mente é o exercício da preocupação (há quem tenha a preocupação do exercício). Na tentativa de lhe retirar esse prazer dou-lhe outras ocupações.

A escrita é uma delas.

sábado, 20 de dezembro de 2014

JOGOS

No jogo da vida valorizamos excessivamente as penalizações: actos falhados, desfeitas, erros – nossos mas, sobretudo, dos outros. Os bónus são parcamente contabilizados, esquecidos, numa memória propensa ao que é negativo. Algo no mínimo absurdo: guardar minuciosamente o material com que amiúde nos martirizamos.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

ESCRITOR

Estranho ser o escritor
que nos rouba os pensamentos.
E com manifesto despudor
usando bons argumentos
desmantela a nossa dor
deixando-nos, parcos unguentos,
palavras aos centos.

OUTONO - V

Despede-se o Outono. Rouba da chuva, das gotas que se vaporam, a melhor luz. E nas folhas que restam inova tonalidades, compensa os dias curtos com assombrosos amanheceres. Deixa saudades desta estação: que dizem melancólica. 





quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

As vírgulas

Rainhas da escrita a elas fora concedido o direito de serem pausas, como na música. Podiam cortar blocos, assassinando a lógica das frases, mas salvaguardando o ritmo respiratório (inspiratório) do escritor.
Foram destronadas por um curso de escrita criativa. Assalta-me, agora, a obsessão das vírgulas (até à demência: diria o professor). Não está bem aqui. Poderá ser ali?
Em caso de dúvida: use os dois pontos. 


terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Dor de dentes

Era uma gata
muito engraçada
partiu um dente
e não se queixava.

Os cereais
não comia, não.
Eram tão duros
tinha razão.

Foi na balança
a constatação.
Estava magrinha.
Porque razão?

A veterinária
achou a explicação.
Vai tirar o dente
não há outra solução.


domingo, 14 de dezembro de 2014

CONFLITO

Move os humanos; relevante tema de conversas: a vida gira em torno de conflitos. Nem que seja na tentativa de os resolver ocupamos grande parte da nossa actividade diária.

sábado, 13 de dezembro de 2014

ORGULHO

Temos orgulho
que tal como o gorgulho
nos apodrece.
Não mais do que entulho
só faz barulho
e a alma fenece.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Naquela casa

Naquela casa a Matilde era feliz. Porque havia muitas mãos, tão pequenas como a suas, para jogarem as peças do Ludo. Porque havia brincadeiras e sustos, jarros do jardim transfigurados em jantares, história que fugiam dos livros. Porque quando as mãos cresceram ensaiaram os acordes das violas e se perderam em horas de canções. Porque, anos mais tarde, a casa desabitada revive no seu coração.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

FRIO - II

A Mia espera pacientemente, à porta do quarto, o momento de entrar. Corre até à janela e delicia-se, vá-se lá saber porquê, a lamber a água da condensação.

No calor inconsequente do quarto, as gotas que se acumulam no caixilho da janela são um líquido revigorante. Assim o deve entender a Mia que lambe afincadamente, como de um maravilhoso elixir se tratasse.




quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

ÁRVORES - III

No tempo de discussões inúteis, de horas perdidas em perguntas sem resposta, abraço as árvores. Elas sabem como não questionar os dias sem sol.




terça-feira, 9 de dezembro de 2014

CONCERTO

Estava desconcertado
com o concerto
com o inconsequente desacerto
que lhe causava um aperto.

E como já não podia
com a distonia
da malograda sinfonia
mesmo sabendo que não devia
atirou o programa ao maestro.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

ESPANTO

O que me espanta… Começaste a dizer. A verdade é que gostavas de te espantar mas não consegues. Porque, por incompreensíveis que sejam as atitudes, geram um padrão repetitivo, como as ondas quando as pedras são atiradas à água.

domingo, 7 de dezembro de 2014

FOTOSSÍNTESE

Se eu abro a persiana e a luz explode a alegria da existência, imagino as plantas, que dela dependem para a fotossíntese.





PRIMAS - II

Partilhámos memórias. E a cada uma de nós a realidade tocou os neurónios com imagens diferentes. E ali, no calor da conversa e do vinho, reconstruímos o puzzle da nossa infância.

sábado, 6 de dezembro de 2014

ADÁGIOS - II

Só tinha um peso e uma medida. Também só tinha uma cara: que raramente via o coração dos outros. Talvez por isso tivesse tanta dificuldade em tomar medidas.

Fotografia de Mário Gomes

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

COMUNICAÇÃO – V

Ela: trazia urgência nas palavras. Ele: hesitava nos gestos. Cansados do desencontro, demoraram-se na ausência.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

CÉREBRO - II

Dotado de estrema plasticidade aprende, reaprende, surpreende. Nos momentos de descanso faz actualizações ininteligíveis, à revelia do utilizador, misturando informação de forma aparentemente desconexa e aleatória. Colapsa se for impedido de realizar esta esquizofrénica desfragmentação disco.
Apogeu da versatilidade, às vezes reverte o sistema, congela ideias, mistura realidade e ficção, levando-nos a um demente estado de inadaptação.


segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

INSOLVÊNCIA

Uma insolvência insolente
Usando argumentação convincente
Escapou toda contente
De uma prisão iminente.
De uma forma conivente
Passou a perna a muita gente.