Nunca ficava bem na fotografia: não tinha pose, não
dissimulava, não estava presente. Talvez se lhe fotografassem a alma fosse mais
fotogénica.
terça-feira, 30 de junho de 2015
segunda-feira, 29 de junho de 2015
Sala de cinema
Estavam poucos mas faziam barulho como muitos. Ainda
que fosse a publicidade ou o anúncio de outros filmes, impunha-se já um
silêncio que ninguém respeita. Quanto mais não seja porque, confinados à
cadeiras, somos bombardeados com a coscuvilhice do dia, por quatro senhoras que
nos gritam as vidas das Manuelas que conhecem (sem ofensa às Manuelas). À frente, outros falam ao telemóvel,
indagando o motivo da doença da D. Lucília, que está sozinha em casa.
Apetece fugir. Mudo de lugar para que o borburinho se
dilua. Mesmo quando o filme começa, não se interrompe totalmente este clima de
fim de dia no Café. Não sei se tenho azar ou se é mesmo para desistir de ir ao
cinema. E, apesar de algum exagero no cumprimento das regras, dou por mim a
desejar que esta sala de cinema estivesse na Holanda. Por algum sistema virtual
de vasos comunicantes, começo a impregnar-me da cultura desse país onde agora
vives.
domingo, 28 de junho de 2015
Expressões idiomáticas
Ia aos arames quando ela se punha a cantar de galo. Ela
conseguia mesmo tirá-lo do sério, por isso ia mostrar-lhe com quantos paus se
faz uma canoa. Quando se aproximou, para lhe acertar o passo, ela deu de
frosques.
Cais de embarque
Transformou-se o nosso país num imenso cais de
embarque. Recebemos a liberdade, depois do adeus, e agora, depois da liberdade,
recebemos o adeus.
sábado, 27 de junho de 2015
ENVELHECER - II
Um idoso não é um velho, é um idoso. Temos pudor em
chamar as coisas pelo seu nome. Semântica será, mas quando dizemos idoso,
despimos a palavra daquele ar de gasto que tanto nos assusta. Sim, porque
envelhecer assusta. E não é caso para menos.
Ponto e vírgula
Não
era possível que agora tivesse de usar o ponto e vírgula! Toda a vida se
deliciara em discursos longos, pautados por inúmeras vírgulas, onde amiúde se
insurgiam alguns pontos finais. Admitia alguns pontos de interrogação, poucos,
porque não gostava de se questionar. Dois pontos e travessões podiam ter
direito a atravessar a sua escrita, se provassem ser necessários. Quanto aos
parêntesis eram benvindos, porque se perdia em sucessivos considerandos, que
muito beneficiavam da ordenação destes emparelhados sinais de pontuação.
Mas o
ponto e vírgula? Foneticamente era uma
pausa longa, indubitavelmente mais longa que a da prosaica vírgula. E, entre
vírgulas, certas palavras deixavam as pausas ao cuidado do leitor. Era o leitor que tinha de lhes dar sentido, demorando-se
a seu belo prazer nas palavras, da forma que mais lhe aprouvesse. Desta forma
investia o leitor de um poder de que não queria prescindir.
Mas,
esteticamente, o ponto e vírgula era uma figurinha triste, algo indefinida, nem
ponto nem vírgula. Esta veemente afirmação da indefinição perturbava-lhe a
escrita que sempre fora muito decidida. Escrevia ao correr da pena (ou melhor, da tecla) à medida que as palavras inundavam o seu pensamento.
Não voltava atrás, não reescrevia, e até o corrector do computador lhe poupava
ter de voltar a ler o texto. Na escrita, como na vida, não se permitia
hesitações.
Estava,
assim, perante um dilema. Se aceitasse a necessidade do ponto e vírgula seria
conivente da indefinição. Abriria caminho ao
retrocesso, ao refazer de textos, a sabe-se lá mais o quê. Por outro
lado o ponto e vírgula trar-lhe-ia o benefício de dominar as pausas da leitura,
fazendo dele um melhor escritor (ou escrevente).
Sempre
tinha querido ser melhor. A escrita não seria excepção. Por isso, no meio
destas cogitações, deu por si a desenhar pontos e vírgulas na aridez da folha
em branco.
quinta-feira, 25 de junho de 2015
HISTÓRIAS – III
Dá-me, a escrita, o poder de traçar destinos. Permite
rasuras, abruptas mudanças de rumo, ensaios, sem que ninguém sofra. Afinal,
apenas construo marionetas saídas da oficina da imaginação. A vida: é outra
história.
quarta-feira, 24 de junho de 2015
PALAVRAS - XV
Com o tempo, começou a falar cada vez menos. Ela
gostava tanto das palavras dele que as gastava no papel.
terça-feira, 23 de junho de 2015
TEMPO - III
O tempo começou a correr na cadência das conquistas: o
primeiro sorriso, o primeiro dente, a primeira palavra, o primeiro passo. Hoje
corre ao ritmo dos nossos encontros. Vamos esperar-te, abraçamo-nos (o
aeroporto agora sala de visitas), e um mês e meio voou ao ritmo do avião que te
trouxe.
VENTO
E eu, que não gostava de vento, agradecia a passagem de
ar que me dissipava o calor. O movimento entrelaçado no meu movimento, que me
permitia o deleite, mesmo no calor da manhã.
segunda-feira, 22 de junho de 2015
DESPEDIDA-VI
Estava quase de partida. Silenciosa: não havia motivo
para embaciar almas, nem para lamentos despropositados. Finalmente recebia a carta de chamada.
Recordem-me às árvores: foi a última coisa que disse.
domingo, 21 de junho de 2015
PORTO - III
Faço meus, edifícios e reflexos, neste deambular
matutino na minha cidade. Testo a nova objectiva na paisagem urbana que encanta
alguma dezenas de turistas. Para eles: uma nova cidade. Para mim: a mesma
cidade, mas um outro olhar. Chegada ao destino: as traseiras da casa e a
gaivota que, no plantão habitual destes últimos Sábados, se certifica de que
viemos.
sábado, 20 de junho de 2015
SERENIDADE – III
Meditar numa palavra. Escolheu: serenidade. Palavra de
muitas letras: soletrou-as mentalmente. Letras que se dividem: ser, idade. Ser
não tem idade: disse-lhe o universo.
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