quarta-feira, 30 de setembro de 2015

ROSTO - II

Era conjuntivite. Não: talvez rinite alérgica. Devia ter trazido óculos escuros. Mas o rosto cerrado, a mão decidida no afastar das lágrimas, deixavam esgueirar a dor que lhe toldava a alma.

Escultura de Dario Boaventura

terça-feira, 29 de setembro de 2015

SAPATO

É um estranho até se afeiçoar ao pé. Até se moldar aos caprichos das curvas e das formas daquele que o vai habitar. É um processo lento que envolve quase sempre um esforço de ambos: umas bolhas e um leve cambar da estrutura poderá ser o preço a pagar.




segunda-feira, 28 de setembro de 2015

OBSTÁCULOS

Em todos os caminhos há percalços. Obstáculos que não entendemos.
Avançar torna-se uma luta. Caímos, erguemo-nos, aprendemos forças que não conhecíamos.

Só mais tarde, às vezes, e em fugazes momentos, nos é mostrado o que ganhámos. E aí percebemos, com um sobranceiro sorriso interior, como as difíceis metamorfoses nos transformam em tranquilas borboletas.


domingo, 27 de setembro de 2015

HONESTIDADE

É o princípio pelo qual me rejo: será  (assim  o espero), aquele pelo qual sempre me regerei. No entanto, bem vistas as coisas, não me tem trazido nada de bom.
Leva-me a confiar nas pessoas, a não ver segundas intenções quando se oferecem para me ajudar: basicamente ofusca-me. Na verdade nunca gostei daqueles que “estão sempre de pé atrás”, mas tenho de reconhecer a utilidade dessa atitude. E a cegueira da minha…
Então qual a vantagem de ser honesta? Em termos biológicos qualquer comportamento cujas consequências levem os seus possuidores a serem mais bem sucedidos pode ajudar a mantê-los na população. Ora o que me é dado ver é que os mais bem sucedidos, e por consequência os que se podem manter melhor na sociedade, são os outros, os desonestos, ou se quisermos ser mais suaves, os menos honestos. Isto quer dizer que estou longe se poder ser considerada um animal óptimo, uma vez que repito comportamentos que não me conduzem ao sucesso. E novamente me pergunto porquê.
Claro que é sempre possível argumentar que estamos longe de ser animais semelhantes aos outros, digamos, aos outros mamíferos superiores que povoam este planeta, e que não faz sentido para o animal racional que somos, a procura incessante de uma razão biológica para as suas atitudes. No entanto, quando de facto nos metemos ao caminho na procura da, chamemos-lhe assim, biologia das atitudes, e nos deparamos com os meandros da dita sociobiologia, podemos assustar-nos um pouco. Podemos verificar que, em várias situações, nos assemelhamos demasiado (pelo menos muito mais do gostaríamos) aos nossos parentes do reino animal.
Mas voltando à minha teimosia em manter-me honesta. Porque é que se mantém, mesmo após a constatação de ter sido, e continuar a ser, um caminho que não leva a lado nenhum e biologicamente pouco recomendável?
O único argumento que encontro é a velha discussão sobre o que poderemos considerar o sucesso. É usar os lugares comuns do que o que interessa não é o que conseguimos obter mas o que fazemos pelos outros, pelo bem comum. Funciona, mas confesso que é uma argumentação um bocadinho deteriorada, dado o excesso de uso que lhe tenho dado. Ou então acreditar que, numa outra qualquer dimensão, alguém está a tomar nota das minhas boas intenções e do afinco com que continuo a praticar a honestidade, acreditando que é assim que vale a pena. Espero que pelo menos, esse omnipresente personagem, não se esteja a rir de mim…


sábado, 26 de setembro de 2015

SONO

Estou aqui, à espera que o sono se compadeça de mim e me adormeça a mágoa. Que me faça flutuar na ilusão dos sonhos e que, já cansado, me deixe acordar devagarinho.



sexta-feira, 25 de setembro de 2015

TRAVESSIA

Atravessas-te na minha tristeza, como antes de ti outros se atravessaram. Imagino-te algures, a velar as minhas lágrimas, finalmente sereno.


quinta-feira, 24 de setembro de 2015

CRESCER - II

Crescer é perder privilégios. É perder a força com que apertávamos a mão de quem nos levava a passear. É perder o sorriso fácil, a palavra solta, o fascínio do presente. No entanto, iludidos por um qualquer futuro, parecia-nos que o tempo não passava. Sonhávamos com o “quando for grande…” Nem todos. Sei de um menino, que mesmo muito menino, já não queria crescer.


quarta-feira, 23 de setembro de 2015

REFUGIADOS

A quem servem de novo estes sapatos?

Budapeste



OUTONO - VII

No tempo da minha infância (e já é há muito tempo), as estações começavam sempre no dia 21: não havia que enganar. Agora, ainda não percebi muito bem porquê, resolvem oscilar nas datas, logo a partir do dia 20. Este ano, já estamos a 23, e só hoje é oficialmente Outono. Talvez condiga com a instabilidade climatérica que agora também acompanha as estações. Seja como for, que seja bem-vindo.






terça-feira, 22 de setembro de 2015

AUSÊNCIA - II

Sabendo que não voltavas as estantes emudeceram; tímidas, as fotografias, abandonaram as molduras.


segunda-feira, 21 de setembro de 2015

CASTANHAS-II

Prenúncio do Outono, abandonam o fruto. Nos tons verdes e castanhos, abrem-se os casulos de picos, oferecendo o seu tesouro de luz e sombra que cativa o olhar.







sábado, 19 de setembro de 2015

Mostrar sem dizer

Se o sentido do Metro é o Hospital de S. João, uma mulher de chapéu, de onde não sai ponta de cabelo, mais não é preciso para se lhe adivinhar a doença. Bem como ao homem de penso no nariz: sabemos ao que vai. Tudo está lá: nos gestos, postura, adereços. Mesmo caladas, as pessoas gritam as suas vidas. E, às vezes, ensurdecem-me.



sexta-feira, 18 de setembro de 2015

HISTÓRIAS - IV

Parte do desafio (e fascínio) de escrever histórias é a resolução de incongruências. Porque, como alguém disse, “a diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem de ser credível”. Uso histórias que me contaram como sendo verdadeiras, mas os pormenores, o que não bate certo no enredo, fica por minha conta. E, nos meandros da imaginação, com uma boa dose de lógica, condimento a história.


quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Pontuação: ponto e vírgula

Não tenho sorte, ponto final. Ponto final, não. Ponto e vírgula. Não tenho sorte; ainda não chegou a minha hora. O ponto e vírgula deu um pontapé ao ponto final, e arrastou consigo a fatalidade da frase. Há que usá-lo mais vezes, para contrariarmos o nosso fado.


LOUCURA

Não dizia coisa com coisa. Mas dizia que dizia a coisa que não dizia. E isso só lhe trazia mal-estar, uma azia, pois se dizia coisa sem coisa, é porque perdera a sintonia.


quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Pontuação: dois pontos

Os dois pontos entraram na minha vida e vieram para ficar. Enumeram, clarificam, chamam a atenção para o que vem depois. Fazem pausas na cadência da escrita em lugares onde as vírgulas seriam obsoletas. Conclusão: entidades que me eram desconhecidas, nessa sua faceta de ligação, são agora indispensáveis.


COMUNICAÇÃO - VI

Pedacinhos de conversa, frases curtas, digitadas à distância de quilómetros de saudade. Vidas distantes que se querem juntas, voam as imagens, às vezes os sons. Imaginam-se os odores. Aguarda-se o tempo dos abraços.



terça-feira, 15 de setembro de 2015

Terminal de Passageiros – Porto de Leixões

O mar na esquadria das ondas, onde nadam os peixes virtuais: nas paredes deixaram as escamas. Mar dentro e fora: nas redes, reflexos, faróis; na imensidão. Vindos do mar os passageiros chegarão: por momentos não se sentirão ainda em terra.