sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

MUDANÇAS

Todos mudamos, não fui só eu que mudei.
Não fazia sentido se assim não fosse. Nada na natureza é imutável, porquê nós?
E ainda bem que assim é.

Há muito tempo escrevi (um tal eu que eu fui):
Como o metal que endurece à martelada, assim endurece o meu coração.
Só que no meu caso o martelo é mais subtil; não sei quando nem como ele me vai agredir.

Aprendi, entretanto, que não é necessário endurecer o coração. Ele é suficientemente maleável para encaixar a dor e a transformar em sabedoria. Às vezes ficam ainda algumas lágrimas, pequenos vestígios das batalhas travadas, mas a angústia, essa, certamente que nos faz crescer.

As mudanças não foram repentinas, todavia podem sê-lo. Um instante basta para se perceber que o nosso ser anseia por algo diferente. No meu caso foi um processo lento, aliás continua a ser. Isso permite que todos nos adaptemos, incluindo eu mesma.

O importante é estarmos abertos, às nossas mudanças e às dos outros. Não faz sentido não aceitar, como não faria zangarmo-nos quando alguma chuva vem esconder a alegria do sol, ou quando a flor despe a sua máscara de pétalas para orgulhosa exibir o seu fruto.

sábado, 24 de dezembro de 2011

ENGUIAS

Enfiadas no lodo dos pequenos riachos, não eram fáceis de apanhar, nem mesmo com a pesca eléctrica. Os escalos, barbos, bogas, esses, rapidamente adormeciam com os 300 V do aro metálico do equipamento de pesca. Era só recolhê-los com uma rede, colocá-los num tanque, e em breve estariam no seu novo e derradeiro lar – um aquário no laboratório. As enguias faziam-se difíceis e só as víamos aparecer depois de vasculharmos pacientemente o dito lodo.

Tinham direito a um aquário só para elas. No outro aquário ficavam escalos, barbos, bogas e outros pequenos peixes.
Depois vinha a parte difícil para quem acha que a biologia é realmente a ciência da vida. Havia que tirar as guelras aos peixes para pesquisar os parasitas, objectivo último do trabalho, e, claro, mergulhá-los primeiro numa dose fatal de anestésico.

E aqui, novamente, as enguias eram imbatíveis, pois dignavam-se ficar cerca de meia hora a estrebuchar, em quantidades incríveis de anestésico, antes de definitivamente se imobilizarem. Não desistiam sem lutar.

Nos dias que passavam no laboratório, era vê-las sempre activas. Mas eram sobretudo rainhas da noite. Relativamente a isto, todavia, resta-me adivinhar, quer pelo que está descrito, quer pela minha azáfama matinal.

Quando entrava de manhã no laboratório, o aquário das enguias revelava sempre algumas baixas. E então era procurá-las nos muitos possíveis esconderijos que eu nem sabia que o laboratório tinha.
Através de uma pequena frincha que havia na tampa do aquário, no local de encaixe do tubo de aerificação, buscavam afincadamente a liberdade todas as noites. Como o faziam não sei, nunca cheguei a presenciar.

O facto é que de manhã jaziam nalgum recanto da minha sala de trabalho, desafiando-me a encontrá-las. E se bem que aparentemente mortas, rapidamente renasciam quando voltava a pô-las no aquário.

Dizem os entendidos que a sua pele muito espessa e uma reduzida necessidade de oxigénio podem explicar esta sobrevivência nocturna. No entanto, explicação à parte, isto sempre me fascinou. Bem como o facto de serem, dos peixes que estudei, os que apareciam com as guelras mais parasitadas. Economizando oxigénio, tudo é possível, mesmo viver com umas guelras que, como um zoo ambulante, não mostram muito espaço livre para trocas gasosas.

Qualquer meia dúzia de parasitas sufocava os escalos, os barbos e as bogas, mas as enguias orgulhosamente resistiam. E, da mesma forma, preferiam alguma falta de ar à perda da liberdade.
Decepar essas enguias, para lhes retirar as guelras, era como obter um troféu num jogo viciado. Assim, era para mim assaz estranho que alguém pensasse sequer em comê-las (uma vez que eu, jívara, apenas lhes retirava as cabeças).

Do ponto de vista biológico, seria uma espécie de reciclagem, dado que, na verdade, os seus corpos esguios acabavam no lixo. Mas, o respeito por aquelas guerreiras imponentes, sempre me fez considerar muito dissonante esse pensamento. Não foi por acaso que um dia sonhei que os peixes gritavam quando eu os abria.

Nunca comi enguias.

domingo, 18 de dezembro de 2011

CANCRO

Sei que estás deitada, à espera de seres engolida por essa máquina que, qual gruta do oráculo, te presenteará com um veredicto. A tua calma impressiona-me. Nos momentos difíceis sei que vais para um lugar onde eu gostaria de estar.

Esta história começou há algum tempo atrás. Sentias-te cansada, com falta de apetite e começaste a perder peso. Alguma coisa dentro do teu corpo entrara em dissonância, adquirira independência e começava a reclamar agora o seu território.

No entanto todos os exames que havias feito regularmente, e que tu tão bem sabias avaliar, calaram esse estranho intruso. Este acabou por se revelar de forma brutal, quando já se encontrava tão desenvolvido que atingira o estatuto de inquilino perigoso. O que começara como um grupo incipiente de células, seguidoras das suas próprias instruções, ameaçava a sobrevivência da estrutura que o sustentava.

Ironicamente, essas células eram nossas conhecidas. Eu procurava as suas intimidades no laboratório, quer no suporte inerte de uma placa de vidro, quer abafando a vida de um ratinho em cativeiro. Tu vias a parte mais trágica, quando elas lideravam o corpo dos doentes, subjugando-os a uma vida que não tinham escolhido.

O que leva estas células, aparentemente iguais às outras, a decidirem repentinamente voltar às origens, procurando de alguma forma ser novamente embrionárias? Qual o fascínio dessa necessidade compulsiva de divisão, que as pode levar à destruição do organismo que as acolhe? São erros no ciclo das suas vidas, mas porquê tu?

Ensaiam-se hoje várias terapêuticas, que continuam no entanto a ser armas fugazes numa guerra que ainda não está totalmente compreendida. Armas que cuja eficácia varia muito, pois o ser humano é bastante mais complexo que uma placa de Petri. Tão complexo que ele memo pode fazer toda a diferença no sucesso dessas armas.

O teu sexto sentido não te avisou atempadamente, mas agora tem conduzido o processo, levando-te a procurar alguns meios que te permitam readquirir a liderança do teu corpo. São diferentes dos que sempre prescreveste, talvez até estranhos, mas têm-te mostrado outras formas de ver a fisiologia.

Por isso, enquanto continuo às voltas com as células malignas, procurando saber o que as poderá fazer desistir, sei que tu já tens a batalha ganha.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

BUSCA

No turbilhão hormonal e emocional que me envolve procuro o lugar onde tudo é possível. Desde sempre que busco algo de aparentemente inatingível, algo que preencha esta sensação de não pertencer a lado nenhum. Toda a vida aspirei a algo de maior. Algo que pode estar na música, na dança, na ciência, na escrita, na espiritualidade, mas sobretudo dentro de nós.
No entanto, é verdade que também bloqueei essa busca, de tal forma que aparentemente foram as circunstâncias que me afastaram do percurso. O medo é tão grande (e medo de quê?), que as asas foram sempre sendo cortadas. Tudo começa fluindo, com a dedicação com que abraço os desafios, mas depois afoga-se nos eternos conflitos. Devia já ser claro para mim que é porque a atitude não é correcta. E até é claro. Então porque resisto à mudança? O tal medo? Qual é a parte de mim que não quer caminhar e qual a que anseia pela liberdade do voo?
É tão simples quanto parar. Deixar a mente esvaziar-se de todos os pensamentos negativos, que se avolumam como bola de neve, e me transportam ao deserto da angústia e ao disparate das palavras. Tudo o que preciso é de silêncio. Silêncio de palavras, já que a música é bem-vinda. E ouvir. Os outros. A voz interior que me pode guiar. Perceber de forma visceral que tudo é transitório e que, de facto, o “essencial é invisível para os olhos”.
Quando chegar a esse ponto, qual alpinista no cimo da montanha, terei a paz. Mas, como o alpinista, há que conquistar a montanha. Como ele, com toda a dedicação, esforço, auto-disciplina. Para poder respirar o mesmo ar rarefeito da plenitude.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

POEMAS - Gostaria de dizer que nada anseio

Gostaria de dizer que nada anseio
que o medo se despediu ainda era noite
e que os sonhos nascem hoje.

Gostaria que o nascer do dia me bastasse
o violeta
o odor da relva cortada.

Gostaria de saber estar aqui
gastar as lágrimas nos sorrisos
e acordar como se nunca dormisse.

Gostaria de dizer que nada anseio
porque então estaria em paz.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

LÁGRIMAS

Às vezes são rios de emoção que, qual inundação, fazem transbordar toda a nossa incerteza humana.
Outras vezes são palavras não pronunciadas, pequenas gotas de desilusão, que timidamente afloram quando não se sabe dizer mais nada.
Tecnicamente são também um meio de escape, já que o corpo depois liberta endorfinas e, qual droga antidepressiva, nos fazem sentir aliviados, mesmo se o que as originou ficar por resolver.
Para alguns são apenas uma forma covarde de chamar a atenção, quando não há argumentos. Daí que não gostem de lágrimas, como se todas as lágrimas fossem “lágrimas de crocodilo”.
Mas as lágrimas, como as pessoas, não são todas iguais. E não são necessariamente uma forma de atingir os outros, podem ser uma forma de nos encontrarmos.
Apanágio das mulheres, são também elas que melhor as entendem, que às vezes até as partilham. Em vez de as acharem lamecha tentam descobrir a solidão que as faz rolar. E sabem estar presentes sem exigir que sequem, sabendo que a fonte se esgotará e trará a paz.
Talvez quem nunca chore não possa entender isto. Mas chorar, tal como rir, pode ser de facto um bom remédio.

domingo, 11 de dezembro de 2011

DOMINGO À TARDE

No Domingo à tarde (noite), no meu prédio, é dia de marteladas. Há os que passam a ferro, cozinham, tocam um qualquer instrumento, vêem televisão, e há os que martelam. Devem pensar, está tudo tão sossegado, não tenho nada para fazer, que tal se fosse martelar um bocadinho? O barulho? Não importa, sou um pouco surdo e além disso o vizinho de cima sacode a toalha e deixa as migalhas no parapeito da minha janela, por isso porque não hei-de martelar um pouco? O meu martelar tem graça…
O que me faz confusão é onde existe tanto para martelar… Onde arranjam a matéria-prima para estes concertos domingueiros tocados com tanto afinco. Dados os vários anos de residência neste prédio, este espaço comum de partilha dos mais diversos ruídos, será que se entretêm a mudar os quadros todas as semanas? Poderia talvez pensar nalguma carpintaria clandestina (dado que ao som do martelo acresce o de outras ferramentas diversas – a máquina de furar não tem um som sublime?), mas nesse caso, não ganhava para o negócio…

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

AUSHWITZ

Um dia lindo de sol e, no entanto, mal saí do autocarro senti, como que vinda do nada, uma enorme tristeza. Como se de repente todo o sofrimento acumulado do outro lado das portas que se avizinhavam me invadisse subitamente.
Entrámos e fomos tomando cada vez mais consciência de uma realidade já antes tão ouvida, lida, vista em fotografias, pela voz simpática mas determinada da Anya, a nossa guia. Ainda que fossemos tantos visitantes, tanta gente a visitar o local, cada um dono dos seus sentimentos, para mim foi como se não houvesse mais ninguém, a não ser o que restava de todos os milhares de pessoas que ali sofreram a morte lentamente, refinadamente, às mãos dos nazis. Como disse a Anya, estávamos num enorme cemitério.
As lágrimas nos olhos, foi-me difícil olhar as fotografias, os rostos, o medo, a desumanização perpetrada de modo premeditado, cínico e eficaz. As crianças, bebés, as suas roupas delicadas, que o tempo não destruiu, aqueles casaquinhos, quem sabe tricotados com o enlevo das mães. Porquê?
Não sou capaz de responder. Não sou capaz de entender como um ser humano pode achar que um seu igual é menos do que um animal, é apenas um número, substituído rapidamente quando não funciona, mais rápida e eficazmente do que eu troco um aparelho que deixa de funcionar.
Aushwitz, Bikernau, foram campos construídos com o único fito de matar seres humanos. O primeiro, explorando o trabalho dos prisioneiros e levando-os à morte lenta pela fome e doença. Deliberadamente não eram bem alimentados. Nada se gastava com eles, tudo se reciclava. Até o cabelo serviu para fazer uniformes para os soldados alemães. Quer eles o soubessem ou não.
Para o aproveitamento ser ainda mais eficaz, as pessoas vinham de suas casas com os seus mais preciosos pertences, que tinham de arrumar em 15 minutos, no máximo de 25 Kg, com a ilusão de que iam ser levados para um local melhor. Eu vi os casaquinhos tão bonitos… Era preciso colocar toda a sua vida naquelas malas, parte delas agora expostas no museu. As mais pequenas eram das crianças. À chegada eram delas despojados, depois da roupa que traziam vestida, o cabelo cortado, pois tudo era mais-valia. A roupa, depois de desinfectada, era dada às famílias alemãs mais pobres - o cabelo já o disse. Quem fosse apto para o trabalho adiava a morte, à custa da sua já calculada deterioração.
Alguns escaparam e contaram a sua história, para sempre seres humanos diferentes de todos nós. Mas todos aqueles sapatos que ali estavam guardam a história de quem não sobreviveu para a contar. E esses foram a maioria.
Mesmo depois de saberem a guerra perdida os nazis continuaram o extermínio. Aliás, intensificaram-no, para que pudessem eliminar o máximo de judeus. Tentaram eliminar os testemunhos dos seus actos e quase o conseguiram. Na verdade, só cerca de 10% pagou pelos seus crimes. A Anya mostrou-nos uma fotografia aérea tirada acidentalmente pelos Aliados ao campo de Aushwitz-Bikernau meses antes do fim da guerra, com o intuito de procurarem fábricas, que foi ignorada. Não quiseram ver.
Alimentando a esperança de que nada disto se possa repetir foi construído o memorial. Porque apesar de tudo se acredita no ser humano. O que é bem difícil quando se visita Aushwitz.