sábado, 24 de dezembro de 2011

ENGUIAS

Enfiadas no lodo dos pequenos riachos, não eram fáceis de apanhar, nem mesmo com a pesca eléctrica. Os escalos, barbos, bogas, esses, rapidamente adormeciam com os 300 V do aro metálico do equipamento de pesca. Era só recolhê-los com uma rede, colocá-los num tanque, e em breve estariam no seu novo e derradeiro lar – um aquário no laboratório. As enguias faziam-se difíceis e só as víamos aparecer depois de vasculharmos pacientemente o dito lodo.

Tinham direito a um aquário só para elas. No outro aquário ficavam escalos, barbos, bogas e outros pequenos peixes.
Depois vinha a parte difícil para quem acha que a biologia é realmente a ciência da vida. Havia que tirar as guelras aos peixes para pesquisar os parasitas, objectivo último do trabalho, e, claro, mergulhá-los primeiro numa dose fatal de anestésico.

E aqui, novamente, as enguias eram imbatíveis, pois dignavam-se ficar cerca de meia hora a estrebuchar, em quantidades incríveis de anestésico, antes de definitivamente se imobilizarem. Não desistiam sem lutar.

Nos dias que passavam no laboratório, era vê-las sempre activas. Mas eram sobretudo rainhas da noite. Relativamente a isto, todavia, resta-me adivinhar, quer pelo que está descrito, quer pela minha azáfama matinal.

Quando entrava de manhã no laboratório, o aquário das enguias revelava sempre algumas baixas. E então era procurá-las nos muitos possíveis esconderijos que eu nem sabia que o laboratório tinha.
Através de uma pequena frincha que havia na tampa do aquário, no local de encaixe do tubo de aerificação, buscavam afincadamente a liberdade todas as noites. Como o faziam não sei, nunca cheguei a presenciar.

O facto é que de manhã jaziam nalgum recanto da minha sala de trabalho, desafiando-me a encontrá-las. E se bem que aparentemente mortas, rapidamente renasciam quando voltava a pô-las no aquário.

Dizem os entendidos que a sua pele muito espessa e uma reduzida necessidade de oxigénio podem explicar esta sobrevivência nocturna. No entanto, explicação à parte, isto sempre me fascinou. Bem como o facto de serem, dos peixes que estudei, os que apareciam com as guelras mais parasitadas. Economizando oxigénio, tudo é possível, mesmo viver com umas guelras que, como um zoo ambulante, não mostram muito espaço livre para trocas gasosas.

Qualquer meia dúzia de parasitas sufocava os escalos, os barbos e as bogas, mas as enguias orgulhosamente resistiam. E, da mesma forma, preferiam alguma falta de ar à perda da liberdade.
Decepar essas enguias, para lhes retirar as guelras, era como obter um troféu num jogo viciado. Assim, era para mim assaz estranho que alguém pensasse sequer em comê-las (uma vez que eu, jívara, apenas lhes retirava as cabeças).

Do ponto de vista biológico, seria uma espécie de reciclagem, dado que, na verdade, os seus corpos esguios acabavam no lixo. Mas, o respeito por aquelas guerreiras imponentes, sempre me fez considerar muito dissonante esse pensamento. Não foi por acaso que um dia sonhei que os peixes gritavam quando eu os abria.

Nunca comi enguias.

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