Não era
uma chuva tímida, do tipo que chove mas não molha.
terça-feira, 31 de dezembro de 2013
CHUVA
segunda-feira, 30 de dezembro de 2013
CANIÇADA
Aqui,
onde passaste os melhores anos da tua infância, quiseste que terminasse a tua
história.
Regressas
às origens. Caniçada, o lugar que adoptaste, pouco abaixo da casa onde os
mistérios do mundo te foram revelados.
domingo, 29 de dezembro de 2013
A barba
Era
uma barba que, como todas as barbas que se prezam, gostava de ser cofiada pelo
dono. Dava-lhe um ar pensativo, talvez até filosófico, digno da pose que
almejava.
O
problema, tardiamente descoberto, era quando os outros a cofiavam. As cócegas
invadiam-na até ao âmago e agitava-se incontroladamente nas convulsões do riso,
perdendo toda a compostura.
sábado, 28 de dezembro de 2013
As palavras - VI
Todas as palavras ainda vão dar a ti. Não olham outros
rostos, não se preocupam com outras vidas, não se perdem noutras melodias.
quarta-feira, 25 de dezembro de 2013
DESPEDIDA - II
Escrevi-te esta carta há cerca de um ano atrás, num dos
teus episódios de maior sofrimento, numa manhã de desespero em que eu senti que
era o tempo da partida, da partida que ansiavas mas que tardava. Escrevi-te,
pedindo mentalmente desculpa por o fazer, movida pela impotência de não te
poder aliviar, e pela certeza de que, no futuro, estas seriam as palavras.
Relendo-o agora, decidi manter este meu testemunho.
10.11.12
Partiste, pai.
Uma morte anunciada, uma longa agonia que, se foi difícil
para nós, para ti foi certamente pior. Tanto, que te deixou sem palavras.
E se eras parco de palavras, eras rico de gestos, que transformaste
em arte. Sensibilidade, beleza, ternura, amor, sempre estiveram nos gestos e
ficarão nas obras.
Lamento não ter podido aliviar a tua dor. A tua revolta.
O teu grito sufocado. Se ainda pudesses esculpir, essas seriam as tuas peças, a
tua última melodia. Lamento que tivesses ter de partir distanciado de tudo, da
tua música, dos teus livros, dos teus programas preferidos. E neste lamento,
grito a dualidade que me sufoca, a dor da tua partida, sobre a qual fui
gastando inúmeras palavras (e sabes como gosto das palavras) e o alívio da
libertação.
Sei que gostarias de ter saído com a tua frase preferida:
“Gostei muito deste bocadinho”. E foi um “bocadinho” bem preenchido, pleno de
amor e de vida, que eu recordarei e reviverei em tudo o que nos presenteaste.
Quando partimos deixamos sempre algo de nós nos outros e
agradeço profundamente o que me deixaste, nos deixaste.
Até sempre
terça-feira, 24 de dezembro de 2013
IMAGENS – III
São estas
as imagens possíveis.
Afasto-me
do teu rosto, mas permanecem as mãos. Magras, pálidas, pisadas. Onde os dedos
se fizeram longos. Macias. Inertes.
Outrora
poderosas. Rendendo o barro, acariciando as formas.
Confio
que o tempo me resgatará outras memórias.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2013
Seguro-te a mão
Seguro-te a mão. Responde-me o teu
olhar, vazio. Um azul sem brilho, guardião de encontros improváveis.
quarta-feira, 18 de dezembro de 2013
PENTEADO
Há um
penteado que é propositadamente despenteado.
Desenganem-se
os incautos se pensam que é sinal de descuido, ou pressa. No rosto bem cuidado,
esse ar de desalinho, qualquer coisa que ronda o desatino, foi meticulosamente
estudado.
Fintas a morte
Fintas
a morte. Algum passe de mágica te permite renascer, como o pássaro mitológico.
Num
corpo franzino, inexoravelmente destruído pela doença e pelos anos, a batalha é
ganha a pouco e pouco, de uma forma que surpreende. Contra todas as
expectativas, permaneces. Lúcido. Um pouco perdido, é certo, as lágrimas
fáceis. Cansado. Mas sempre conservando o teu particular sentido de humor.
terça-feira, 17 de dezembro de 2013
SILÊNCIO - II
Sempre
gostaste do silêncio das palavras. Mas nas longas horas de solitária criação, a
música preenchia os teus dias. E se voz fosse dada às tuas peças, certamente
trauteariam trechos de Mahler ou de Bartók.
No
silêncio te encontras. Num mundo que me está vedado. Talvez em busca da
serenidade.
E
procuro, nestas breves palavras, a comunicação que se perdeu.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2013
TOSSE
De
mãos nos bolsos, e de ar indiferente, foi tossindo várias vezes sem pôr a mão
na frente. Se fosse na Holanda, após o primeiro espalhar de microrganismos
sobre os companheiros de cadeira, já alguém lhe teria dito se não conhecia as
regras da boa educação (e da higiene pública).
Mas
não estamos na Holanda e a senhora continuou. Cinco vezes. E não era por ter
frio nas mãos. A mão esquerda, por diversas vezes abandonou o calor do bolso
para coçar a cara, ajeitar o cabelo, esfregar o nariz.
Fosse
pela impaciência do senhor à sua frente, movimentando-se desconfortavelmente na
cadeira, fosse porque os ataques de tosse eram mais fortes, nas três vezes
seguintes achou por bem pôr a mão.
Mas
rapidamente voltou ao mesmo, alheia à consideração pelos outros passageiros.
sábado, 14 de dezembro de 2013
OUTONO - II
Trouxe-me
até aqui, o Outono. Decrescem os dias na multitude das cores. Entre intempéries,
a vida escoa-se na letargia do Inverno.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2013
PARIS
Em cada
visita, mantém-se o deslumbramento.
Do
Trocadero, onde vendedores ambulantes impingem os mais variados itens, a cidade
desnuda-se nos repuxos, enchendo-me os olhos de água.
Suspensa,
a cidade vive no ritmo da minha respiração.
Ao
longe, imponente, a Torre impõe-se.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2013
Sentir-se em casa - III
Conheço
alguns locais, não muitos, onde seria natural sentir-me em casa.
As
fachadas, o correr da água, os reflexos, a música do discurso, não me seriam
difíceis. E, certamente apelativo, poder ter uma vida mais segura.
![]() |
Fotografia de Mário Gomes |
Mas
olho pela janela o amanhecer, entrecortado por tantas outras imagens, e sei que
a adopção nunca seria perfeita. No meu coração há um país biológico.
Fotografia de Mário Gomes |
segunda-feira, 9 de dezembro de 2013
sábado, 7 de dezembro de 2013
O espelho - II
O
António deixou de gostar do espelho. Companheiro fiel de uma vida, assistira a várias mudanças de visual. Subtilmente o aconselhara quando a indumentária raiava
o mau gosto.
Mas
agora a verdade era implacável. Por isso pouco lhe importava que os estilhaços,
dispersos pelo quarto, lhe pudessem vir a trazer alguns anos de azar.
quinta-feira, 5 de dezembro de 2013
As mãos - II
São trémulas, as mãos. Antes,
decididas, despertavam figuras do barro, em longas carícias. Tinham um olhar
límpido, azul.Hoje,
vagarosas, gélidas. Tão perdidas quanto o olhar.
terça-feira, 3 de dezembro de 2013
SILÊNCIO
Inspiro
o ar frio da manhã. Pedaços da noite agarram-se ao meu cabelo. No frenesim da
cidade que acorda dou voz ao silêncio.
sábado, 30 de novembro de 2013
MOMENTO
Permanecer ao teu lado. Na
respiração. Sentir o teu odor que se entranha na minha pele. Suspensa no
momento.
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
INFLAMAÇÃO
Vivemos
rodeados de microrganismos, com um pacto de não-agressão benéfico para ambas as
partes. Se as fronteiras forem respeitadas, tudo funciona.
Aparentemente
esta é a receita para o sucesso, mas a nossa extrema desconfiança, o nosso medo
de perder o controlo, levou-nos à posse de um poderoso arsenal de guerra. Para
o que der e vier.
Assim,
qualquer intromissão para além do aceitável, é vista como uma ameaça terrível,
e a ela reagimos com a vasta panóplia dos mecanismos de defesa. Um intrincado
processo chamado inflamação.
Mais
do que com a ameaça, padecemos com a cura. As armas de destruição maciça
deixam-nos num estado lastimável, obrigando-nos a recorrer a vários fármacos.
Apesar
dos efeitos colaterais, este mecanismo de sobrevivência trouxe-nos até aqui. Se
calhar por isso o repetimos, à escala global, como espécie, parafraseando o
conhecido adágio – a melhor defesa é o ataque. E não olhamos a consequências.
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
ROSTOS - II
Alguns,
morosos, revelam todo um trabalho de retoque. Outros, rápidos, espelham manhãs
breves, mas nem por isso menos bonitos.
São passado,
em olheiras mal disfarçadas ou em rugas ostensivas, pele curtida nas
intempéries do desgosto. São presente, em olhos sorridentes e interrogações
vãs.
Pinto
este quadro com palavras.
terça-feira, 26 de novembro de 2013
As palavras - V
As
palavras interrogam-me. Mas só as lágrimas respondem.
Ecoam
gritos de mágoas passadas. Silenciam-se no abandono.
Perplexa, a alma voou.
segunda-feira, 25 de novembro de 2013
SAÚDE - II
A saúde é um estado transitório que não inspira nada de
bom. Outra das frases preferidas do meu pai, memorizada das suas leituras.
Parecemos viver numa eterna corda bamba, prontos a cair,
inexoravelmente, e sem aviso prévio, nos ardis da doença. A verdade é que somos
mais resistentes do que pensamos.
Transportando mais bactérias do que células, o nosso
corpo parece a receita certa para o desastre. Um vulcão, pronto a entrar em
erupção. No entanto estabelecemos com os microrganismos um pacto de não-agressão.
E, na maior parte dos casos, as fronteiras são respeitadas. Situação favorável
as ambas as partes, pois não adoecemos (recebendo mesmo algumas benesses destes
simpáticos viajantes), não sendo abalado o corpo que tão placidamente os sustenta.
sábado, 23 de novembro de 2013
ÁGUA
Volto
à água. Berço de todas as emoções.
Repetidamente
mergulho na amálgama de sensações. E de sons.
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
terça-feira, 19 de novembro de 2013
Meia-pessoa
Cruzou-se
comigo. Meio-corpo, na cadeira de rodas. Conversava normalmente, com quem
empurrava a cadeira.
Sem
metade de si, não era meio-homem. E foi esse rasto que deixou.
segunda-feira, 18 de novembro de 2013
ESTRANHEZA
As
pessoas são muito estranhas.
Algumas
parecem mudar de humor quando mudam de roupa, de tal forma que nunca sabemos
quem são.
Outras
andam às voltas, redondas, e não conseguem comunicar.
domingo, 17 de novembro de 2013
ESCREVER - IV
Sinto,
em cada dia que passa, que cada vez menos me pertenço. Possuem-me as palavras,
as imagens, os sons, excertos de conversas. Esboços de personagens povoam o meu
sono.
sábado, 16 de novembro de 2013
OUTONO
As
árvores não vestem a mesma cor nos dias sem sol. Por isso, nesta solarenga
manhã de Outono, inebrio-me.
DEGRADAÇÃO
Não sei
quando o corpo deixa de nos pertencer. Em que momento da lenta degradação, implacável,
nos afastamos para sempre. Quando a lucidez se torna tão dolorosa, que qualquer
fantasia é válida.
quinta-feira, 14 de novembro de 2013
NOSTALGIA - II
Coloquei
este colar e lembrei-me de ti. Pedaços da nossa vida se agarraram ao azul da
pedra. E, por momentos, fui os dias felizes.
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
Meias e caixas
À
primeira vista não há qualquer relação entre as meias e as caixas herméticas. O
que é certo é que em ambos os casos, os pares se desirmanam. Por um qualquer
inexplicável fenómeno, tenho caixas sem tampas, e tampas solitárias, inadaptadas
para as caixas que restam.
O
mesmo acontece com as meias. Almas gémeas, que de forma indiferente se colocam
à esquerda ou à direita, ficam sozinhas, à espera de um cada vez mais longínquo
casamento.
Sem
relação aparente, é todavia um facto comum a vários lares, pelo que se supõe a
existência de uma explicação. Sempre gostei que as coisas tivessem explicação.
Mas não tenho uma bola de cristal que me identifique o rasto destes objectos.
Nem que desvende a estranha magia que leva a que desapareçam em conjunto.
terça-feira, 12 de novembro de 2013
DESPEDIDA
Vou
dar-te um beijo, disse-lhe.
Ficou
à espera. E o tempo consumiu-se em dias amargos. No Inverno que chegava, o
coração enevoou-se.
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
As palavras – IV
As palavras andam por aí, à
procura de um enredo.
Ainda não são uma história, ainda
não se abraçam numa fluida narrativa.
Precisam de tempo. Aguardam.
sábado, 9 de novembro de 2013
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
Mata de Albergaria – II
Abraço
do verde nos troncos emaranhados. No tapete de fetos nasce o castanho.
Humidade, onde reinam cogumelos. Chovem cascatas onde o tempo se sustém.
terça-feira, 5 de novembro de 2013
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
Dias de chuva – II
Não
sei se os dias de chuva são tristes ou se a chuva vem porque o dia acorda
triste. Mas é sobretudo nesta ausência de sol que a melancolia me aprisiona.
domingo, 3 de novembro de 2013
Cascata do Tahiti – II
Ser parte desta água. Correr sem
destino, poderosa e todavia serena.
Estremece-me o odor do musgo.
Gotículas de água refrescam-me em efémeros arco-íris.
Contemplo. A força deste som cala
todas as vozes.
~
sábado, 2 de novembro de 2013
A raiva
A raiva tem palavras afiadas. Que magoam onde o coração se faz tranquilo. Onde, nos dias de chuva, a cicatriz volta a doer.
sexta-feira, 1 de novembro de 2013
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