terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Onde é que estão as minhas calças pretas?

Onde é que estão as minhas calças pretas? Pergunta um. Já foram para lavar? Alguém as arrumou no armário errado? Continua o mesmo. Vem outro e diz: “ Emprestas-me os teus calções cinzentos que tenho agora educação física?”
Uma família com três filhos é, sem dúvida, uma família numerosa. Um deles até já me disse: “Não sei onde tinhas a cabeça quando resolveste ter três filhos!”
Eu sei onde tinha a cabeça. Na minha infância. Na casa dos meus primos, naquelas cinco crianças com quem partilhei tantas brincadeiras, e não menos asneiras. Filha única, entrava naquela casa com jardim como se entrasse no paraíso.
Tive direito a histórias de meter medo, a assistir à administração de aspirinas a rãs, porque tinham mesmo ar de estarem com dor de cabeça, a ver galinhas, porquinhos-da-índia e cágados no quintal.
Havia um frigorífico imenso onde ao fim de semana descansavam litros de iogurte. O empadão de pão com queijo e fiambre. Os tabuleiros da fruta.
Impregnei-me daquela camaradagem, daquele universo partilhado. Até hoje. Surge novamente diante de mim quando um dos meus filhos indaga pelas calças pretas.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Ainda o ventre

O cordão umbilical, suporte de vida, é cortado à nascença, proclamando a nossa entrada no mundo. A nossa independência. Que é teórica, pois somos a cria mais dependente que se conhece.



É certo que alguns têm sobrevivido longe dos seus semelhantes, que se saiba não logo após o nascimento, mas na verdade com muito poucos traços da sua espécie de origem. Não possuem o dom da linguagem. Mesmo se porventura vierem a aprender a falar, o discurso é rudimentar, e a sua relação com os semelhantes será sempre difícil.

Transitamos do ventre que nos alberga, de uma dependência visceral, para uma dependência mais subtil, que até já nos poderá permitir sermos afastados desse ventre, desde que alguém assegure o alimento, a protecção e os afectos.

Mas na realidade algo de muito forte, simbiótico, existe neste enlace do ventre. Há quem diga que muito se deve a uma pequena molécula, que responde pelo nome de ocitocina. Há quem sinta que é algo muito mais profundo. E, como dizia um amigo meu, às vezes até parece que o cordão umbilical nunca foi cortado.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

A escrita

Tal como a ginástica, tornou-se para mim a escrita um exercício diário, fazendo à alma o que a ginástica me faz ao corpo.

Alguns textos são fáceis. Brotam como se, prisioneiros, lhe fosse aberta a porta para a liberdade. Outros não. São mais ideias, ainda em busca das palavras certas. Por isso precisam de algum repouso. Por isso gosto de os começar em papel, para escrever, riscar, voltar a escrever. E, muitas vezes, abandoná-los à sua sorte.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Funeral

Hoje é um dia triste.
E por mais que saibamos que este dia tinha de chegar, e que não se adiantou, como acontece a tantos, hoje é um dia triste.
Não mais a tua voz, os teus passos, o acordar sabendo que estás aqui. Já não vai haver mais abraços, histórias, sorrisos.
Fica, é certo, a memória, muito de ti nos que ficamos, um pequeno tesouro em cada um de nós. Mas, são os não mais, que tornam negro este dia de sol.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

É no ventre

É no ventre que tudo começa. E que tudo termina.

Começa bem antes do nosso nascimento, já que ainda somos fetos quando nos é legado o potencial de gerar vida. Milhões de pequenas células que, num ciclo eternamente repetitivo, se candidatam a produzir um novo ser.


Na verdade não é eternamente, já que, como disse, é no ventre que tudo termina. Todos os meses estas células morrem, mesmo as cerca de quatrocentas que alguma vez estiverem perto de ser fecundadas. E quando o stock termina, não há como repor.

Silenciosamente o corpo começa a transformar-se. Sinais a princípio indeléveis, que a pouco e pouco se tornam mais urgentes. Às vezes bastante incómodos. É como se no ventre algo agonizasse e gritasse que não deseja desaparecer. 

E esse ventre, que já foi amado, habitado, dilatado, e até rasgado, converte-se num vulcão adormecido.


sábado, 18 de fevereiro de 2012

O tomate

Era um tomate muito redondo,bem parecido, fruto das longas tardes de exposição solar.

Quando começou a despontar, procurou que o ramo que o sustentava crescesse mais que os outros. Agora, naquele tomateiro, era ele o primeiro a ser aquecido pelo sol, pouco lhe importando se fazia sombra aos restantes.


Era também o que mais sobressaía. O que era fulcral, pois acalentava o sonho de um dia vir a ser apresentado, numa salada bem confecionada de um famigerado restaurante gourmet.

É certo que, sendo o mais visível e apetitoso podia acabar debicado pelos pássaros. Mas o sonho valia bem o risco.
Finalmente o dia da colheita chegou. O tomate estava muito orgulhoso da sua aparência.

Mas a vida tem destas coisas. Em vez da salada, num lugar distinto, foi misturado com os colegas de aspecto duvidoso, terminando os seus dias como polpa de tomate.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

POBREZINHO II

No mesmo país pobrezinho, com um presidente igualmente pobrezinho, o governo, cansado de tanta pelintrice, qual habitante do bairro de lata com Mercedes à porta, mandou imprimir o seu programa em papel da mais alta qualidade.

Mas faz todo o sentido. Tal como açúcar adicionado a um remédio difícil de engolir, ao caprichar no visual do programa, o governo nada mais fez do que torná-lo mais fácil de ler, perdão, de cumprir, e só o eterno maldizer tipicamente português é que não nos permitiu ver isso de imediato.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A capa do livro

São vários os livros no escaparate. Olho. Não conheço os autores. E no meio de todos há uma capa que me prende olhar.

Não sei definir o que tem ela de apelativo. Certamente uma qualquer sintonia entre o título e a imagem.

Só sei que é naquele livro que pego, em detrimento dos restantes. Como se dele algo mágico emanasse. Como se me pedisse que o tocasse, que o abrisse.

E é o que faço. E depois, na contracapa, leio a sinopse. Se a magia perdurar, o mais certo é eu levar o livro para casa.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

As embalagens vazias

Antes do passo da reciclagem há outro mais importante que as embalagens deviam ter por inerência. Deviam ser previamente treinadas para, quando despidas, pelos diversos utentes, do seu apelativo conteúdo, caminharem ordeiramente para o lixo.

Mas não, teimosamente ficam a arrastar-se pelos armários, pelo balcão da cozinha, em cima das mesas, como se por um qualquer milagre fossem, finalmente, desaparecer em direção ao lixo.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

A caixa dos cotonetes

Já viram coisa mais chata do que deixar cair a caixa dos cotonetes?

Dezenas de pauzinhos brancos, que estavam antes muito arrumadinhos na sua caixinha, espalham-se num onda de liberdade. Perdem a sua postura alinhada que lhes dava um encaixe perfeito, ficam desorientados, cada um para o seu lado, e quando queremos agarrá-los, para voltarem à sua prisão, o seu volume é muito maior.


Se queremos pô-los novamente no lugar a que pertencem, temos de o fazer com cuidado, quase um a um. E no final podemos até aperceber-nos que, no seu branco imaculado, vivem agora alguns resíduos do chão da casa de banho, que nem sabíamos que existiam.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

BUROCRACIAS

Não podemos ser piegas mas, pelos vistos, podemos ser ridículos. Redigir e aprovar leis ridículas.

Para se ter direito ao seguro social voluntário (a única segurança social dos bolseiros de investigação deste país, assim uma segurança social de segunda categoria) é preciso apresentar um atestado de aptidão para o trabalho. Nada melhor do que este poder ser passado pelo médico do trabalho, na consulta obrigatória a que se tem de comparecer. Rentabiliza-se o tempo e é-se mais produtivo. Aliás, não foi a isso que se alegou para reduzirem os feriados?

Mas não, numa qualquer inspiração divina, os escribas da lei alteraram, sem qualquer aviso prévio, as condições. E os incautos vão à Segurança Social perder duas horas, apresentam todos vaidosos o atestado obtido no seu local de trabalho, para três semanas depois receberem da digníssima Segurança Social uma carta informando que não serve.

Ora faça lá o favor de cá voltar, perder pelo menos mais duas horitas, se quer realmente ter direito a alguma coisa, e com um atestado dos bons. E esses são passados apenas pelos médicos dos Centros de Saúde e dos Hospitais (mas muita atenção, nunca na urgência, que aí há mais que fazer). Os outros, meus amigos, deitem-nos ao lixo.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O silêncio do corpo

Roubei esta frase ao meu pai. Provavelmente ele também a roubou a alguém, o que, segundo o velho adágio, me concede o total perdão por este abuso.
Quando tudo no corpo funciona, vivemos na harmonia fisiológica. Os órgãos entendem-se, cumprem as suas tarefas, e não nos aborrecem com as suas eventuais quezílias. O corpo é, por isso, silencioso.
Com o passar dos anos, começamos a ouvir sinais de alarme. Passamos a ter conhecimento desses órgãos que viviam calados. E aí temos fígado, estômago, um braço que não respeita a hora do sono, um coração que adquire música própria, e ganhamos toda uma orquestra que agora toca sob os augúrios de um maestro duro de ouvido.




quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Dores de cabeça

Tinha tantas dores de cabeça que invadiram o sossego do seu sono.
Sonhou que a sua farta cabeleira aos caracóis caía aos pedaços. E na cabeça pululavam vermes, que saíam de incontáveis feridas. Estranha fantasia esta, engenhosamente produzida nos confins do subconsciente.
A realidade, é que as dores de cabeça em salva que o assolam são consideradas as mais devastadoras de todas. Podem levar um indivíduo a dar com cabeça na parede. Literalmente, não é uma metáfora. Outra classificação, não menos óbvia, é dor de cabeça suicida.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Brincar com as palavras

Brincar com as palavras. Riscá-las. Voltar a escrevê-las. Sorrir. Obrigá-las a alinharem na história que queremos contar. Mudar o texto. Ser outro e o mesmo.

E no fim já não saber se elas contam a realidade vivida ou a inventada, onde subtilmente nos escondemos.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

ANATOMIA

Nada mais do que um invólucro. Repito a mim mesma, nada mais do que um invólucro. E no entanto, deitado na mesa de dissecção, hesito em considerar-te um modelo ou um ser humano.

Se neste momento entrasse uma criança no teatro anatómico, parece-me que não lhe causarias qualquer tipo de desconforto. Sem uma perna, hirto e com uma tonalidade castanho acinzentada, assemelhas-te sobretudo a um dos bonecos que habitam nas prateleiras do seu quarto.

Na verdade, não te considero assustador. Aliás, és já demasiado conhecido, o mesmo ao longo de várias gerações de estudantes, para quem tens sido um silencioso professor.

Nada mais que um invólucro, no entanto mostras-me a efemeridade da vida e obrigas-me a enfrentar a realidade da morte. Fico mais ciente de como tudo é temporário e de que o importante é o momento presente. A tua face é jovem e dou por mim a pensar como vieste aqui parar, onde gastaste os teus dias, e até mesmo onde estarás agora.

De certa forma sinto-me uma intrusa, penetrando nesse aglomerado de ossos, músculos e tecido conjuntivo que tão sossegadamente expões. Mas é graças a ti que é mais fácil conhecer os mistérios desta máquina chamada corpo humano. Localizando artérias e veias, qual mapa de uma grande cidade, podemos ver melhor o suporte físico da sua actividade.

Dos meus olhos aguados, irritados pelos vapores de formol, começam a cair algumas lágrimas. Mera reacção fisiológica ou tributo à tua presença?

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

IDEIAS

Estranhas entidades que me invadem, vindas do nada, e que prontamente tento decorar, ou registar. Uma frase, um gesto, uma observação, e logo surge uma incontrolável vontade de escrever alguma coisa. Como se, a partir de um dado momento, ganhassem vontade própria.

E assim me interrompem o que faço, até o sono, não me dando tréguas até desaguarem na folha de papel.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

STRESS

Do inglês (porque será que o inglês nos parece sempre uma língua mais simples, com um toque mais científico?), descreve tanto um conjunto de factores que perturbam o normal funcionamento do organismo, como o esforço do mesmo no combate ao seu efeito nefasto. Este esforço é portanto uma reacção normal, benvinda, adaptativa, a tentativa de repor o equilíbrio. Graças a um verdadeiro coktail neuroquímico é fantástico para darmos luta, para a resposta imediata.

No entanto, se mantido por muito tempo, é tudo menos benéfico. Desgasta as nossas reservas energéticas, diminui as nossas defesas. Não foi previsto para durar. Por isso é complicado quando não conseguimos eliminar o que nos desequilibra. Entre diversas maleitas, começamos num lento processo de auto-destruição. Se nos sentirmos verdadeiramente encurralados, podemos até optar por uma forma mais rápida, contrariamente ao que ocorre no mundo animal, onde o suicídio é fenómeno pouco comum (inexistente? A velha história do escorpião que se envenena si próprio quando colocado dentro de um anel de fogo, parece não passar de um mito urbano).

Para meu espanto, à nossa gata, a Mia, foi diagnosticado stress. A esta criatura indolente, que dorme e se espreguiça o dia todo, que tem comida a horas, e sem nada aparente que a incomode. Não sabemos porquê. A menos que, numa atitude solidária, fique com o nosso.