quinta-feira, 31 de maio de 2012

Meio sorriso


Esboçou um meio sorriso. Um sorriso completo era muito cansativo, envolvia excessivo trabalho muscular e, segundo ele, não valia a pena.

A conversa não o envolvia. Divagava das palavras proferidas, para a imagem quase etérea da mulher desconhecida que viera a observar na viagem.

Manteve o meio sorriso. Um ligeiro ondular do corpo na cadeira. O suficiente para disfarçar a sua desatenção.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Poemas com rima – A mente e o coração

A mente que desmente
O que o coração sente
Imune às emoções
O seu trabalho é diligente
Colecciona razões
Argumentando questões
Para que o coração se aguente
E não caia aos tropeções
Por amar sem condições
E ser tão impaciente.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

COMPOR

As notas iam e vinham na sua cabeça, excertos de melodias, como frases perdidas de um texto desconexo. Não sabia ao certo porque era perseguido pelos violinos, um crescendo inacabado que não encaixava com os sopros. Isso não era costume. A sua fragilidade era nos violoncelos, instrumento que em vão quisera aprender a tocar.
Olhou o mar. Violinos. Novamente violinos. Gemendo um som que o abafava. Ignorando o ritmos das ondas e das gaivotas. Gostaria de um tampão nos ouvidos que desligasse os sons na sua cabeça. Onde teriam de ficar a incubar.
Foi-se embora.


sábado, 26 de maio de 2012

Poemas com rima - Centro de Dia


                                              (fotografia de Mário Gomes)



Os velhinhos alinhados
Põem a conversa em dia
São momentos bem passados
Em frente ao Centro de Dia.

Estão à sombra, gestos lentos
Contam façanhas de outrora
Mantêm os movimentos
Porque a morte ainda demora.

Nesta tarde alentejana
A vida corre devagar
E a fila não se desirmana
Até a noite chegar.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

INSTINTO


Enfiada dentro de casa, com comida à disposição, a Mia não perdeu a vontade e capacidade de caçar. Que o digam as moscas e outros insectos que se atrevem a ficar no seu alcance.

Avalia a sua natureza, deita-lhes a pata, e quando os vê quase anestesiados mete-os na boca, lambe-os, mas não os come enquanto não forem definitivamente cadáveres.


É por isso que com as vespas e abelhas este ritual é prolongado. Parece saber que a podem picar, é cuidadosa, e espera paciente, entre as inúmeras investidas, que a sua presa atinja aquela imobilidade que lhe garanta o óbito.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

DIFERENÇAS

Como será o mundo dentro do mundo daqueles que, sendo como nós, todavia não o são?
Prisioneiros de si mesmos, habitando uma fantasia a que não acedemos, qual será a forma como nos vêem? E como nós os vemos?
As nossas atitudes, vão do afastamento do que nos é estranho, à compaixão pela sua diferença, mas será que estabelecemos uma verdadeira comunicação?
Alguns expressam-se através da escrita, das imagens, dos sons, assim passando para nós um pouco desse seu mundo. Provavelmente não é o que sucede com a maioria, perdendo-se a oportunidade de uma mútua descoberta.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Poemas com rima - Pelas terras de Portugal


Estava eu em Alfafar
A ver o tempo passar
Mas fui à Lagoa de Podentes
Porque me doía os dentes.

O dentista bem pegou na pinça
Mas fugi para Chainça
E ainda se me arrepiava o pêlo
Quando subi ao Germanelo.

Dali vi Casais do Cabra
Sempre com a dor macabra
Então virei para Gocinas
Em busca de outras medicinas.

E num curandeiro em Viavai
Não pude  dar nem um ai
Mas livrei-me do meu mal
Antes de chegar a Favacal.

Depois de tantos desenganos
Fui descansar para Portelanos
Terminei com um bom doce
Numa esplanada em Chão de Couce.

terça-feira, 22 de maio de 2012

CONFIANÇA

Existem os desconfiados e os demasiados crédulos. Os primeiros são tidos como exagerados, vendo perigo em tudo, achando que qualquer pequeno gesto de simpatia esconde uma terrível ameaça. Os segundos, com a sua bonomia e a inabalável fé na espécie humana, entregam-se inocentemente aos outros, porque acham que no fundo somos todos boas pessoas.
Os desconfiados serão, certamente, menos felizes, menos sociáveis, mais solitários. Os demasiado crédulos são as pessoas de quem se gosta, com quem se fala, mas que mais frequentemente podem terminar os seus dias com uma facada inesperada.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O tempo


Este tempo tem problemas de próstata. No Inverno, a sua imensa bexiga começou a acumular chuva e, por força de alguma infecção, ou de outra causa menos conhecida, a próstata não a deixou esvaziar.

Finalmente, depois de inúmeras mezinhas (danças da chuva incluídas), chegou o alívio para tão incómoda e prolongada doença. Mas, tal como a maleita foi duradoura, a cura também o é, já que a próstata tem diminuído de forma lenta, obrigando a chuva a sair às pinguinhas, ocupando selvaticamente a incauta Primavera.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

PAPOILA


Com o seu vestido vermelho levemente amarrotado, deixando-se embalar por qualquer brisa suave, tem um ar frágil e delicado. No entanto a sua cápsula, quando ainda verde, alberga um suco poderoso, capaz de nos levar a um estado onde a realidade e fantasia se confundem, e por isso é também conhecida como a planta da alegria.

Mas o ópio, como muitas outras drogas, faz do ser humano um prisioneiro, transformando a paz inicial num espinhoso pesadelo.



Talvez, naquela aparência de flor ingénua, o vermelho seja o aviso.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Sentido de orientação


Conheço alguém que continuamente se perde. De carro (talvez o mais compreensível, e para isso tem a ajuda do GPS), de bicicleta, a pé. Caminha muitas vezes em sentido contrário, só se apercebendo alguns quilómetros depois, mesmo levando um mapa.

A mesma pessoa, numa cidade desconhecida, não padece do mesmo desatino, facto que me intrigava. Resolvi, por isso questioná-lo.

Com o seu meio sorriso, disse que, na sua cidade natal, onde tudo lhe é familiar, qualquer coisa se passa na sua cabeça que o leva a pensar que sabe onde está. Que reconhece. E assim se entrega ao seu passeio (devaneio?) predestinado ao engano.



Numa metrópole que nunca viu, munido do mapa, está atento ao traçado das ruas, às placas, não incorre em fantasias. Usa, finalmente, o seu sentido de orientação.

domingo, 13 de maio de 2012

Domingo de manhã


Domingo de manhã, na aldeia. Chega a carrinha do pão. Entre as rocas e as borlas de Berlim, põem-se as conversas em dia. “O marido da vizinha, que parecia tão bem, tinha deixado de fumar há quatro anos, e não é que lhe deu um ataque que o deixou paralisado?”

Já têm o pão para o pequeno-almoço, fresquinho, vão-se embora.

As conversas sobre os seus problemas e a desgraça alheia, pode bem prosseguir depois da missa.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Em frente à praia


Finamente sol. Um odor a maresia que me penetra a alma. Como se as algas tivessem acordado no pico do seu esplendor.

O mar é uma das minhas paixões. O constante vaivém das ondas parece-me o vaivém das emoções.


Imagem de força, tem algo de misterioso no seu revolto movimento, que me assusta e me atrai.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

MUTILAÇÃO

A mutilação do nosso corpo é coisa que o cérebro tem dificuldade em aceitar.
Foi-lhe atribuído um corpo completo, pelo qual ciosamente zela. Não entende porque nos levantamos um dia, e uma perna já não está lá, retirada por uma eventual falência da qual não se sente culpado.
Então resolve o assunto de uma forma subtil, com dizem que faz a avestruz quando esconde a cabeça na terra. Ignora a situação.
E para dar mais credibilidade, inventa uma dor para esse membro que se foi, tão bem denominada pelos entendidos como dor fantasma.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Anúncio

Procura-se
Oferece-se – Emprego garantido para toda a vida, sem risco de despedimento. Remuneração – sorrisos, beijos, lágrimas, a alegria de contribuir para o crescimento de outro ser humano.
Pretende-se – Boa disposição, capacidade de executar várias tarefas em simultâneo, dons de adivinhação, boa memória, perícia em gestão de conflitos, paciência, amor incondicional.
Nota importante - Só responder quem estiver realmente interessada em ser mãe.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Poemas com rima – Cacimba

Olho pela janela, cacimba.
Não vejo nada à minha frente.
Bato com os dedos na tarimba.
É uma forma de ficar quente.

Dizem que estamos em Maio.
É convicção do calendário.
Mas tenho dúvidas quando saio,
se não mudei de fuso horário.

Estou com sono, indolente.
Até com uma certa astenia.
Se esta chuva é deprimente,
vou inventar a alegria.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Maio

Estamos a 7 de Maio. Um Maio tímido, frio, chuvoso. Como se devesse algo ao Inverno, alguma intromissão fora de tempo, tem agora vergonha de vestir as suas cores.
Vejo voar as inflorescências brancas, que parecem flocos de neve, e costumam cobrir os pavimentos, nos solarengos dias de Abril e Maio. Mas agora são escassas, em sintonia com esta Primavera em crise de identidade.
Caminho com a sensação de que me enganei no calendário.

sábado, 5 de maio de 2012

Estranho fenómeno


Tem vindo a passar-se um estranho fenómeno, que pela repetição, me começa a intrigar.

Entro no Metro. Procuro um lugar livre para me sentar. Mas quando lá chego, afinal está ocupado. Uma mochila, uma pasta, uma saca. O proprietário não a retira quando me aproximo. Não por uma qualquer distração, mas numa atitude deliberada. Tão deliberada, que sou obrigada a perguntar se o referido objecto lhe pertence, chegando mesmo a temer que a sua presença na cadeira resulte apenas do infeliz esquecimento de um anterior ocupante.

E é com um ar de imenso fastio, como se o meu desejo de me sentar representasse uma descabida afronta, que o seu dono (ou dona, pois isto já me ocorreu em ambos os géneros), se digna retirar o seu pertence e ceder-me o lugar.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Aprender a tocar


É ténue a linha que separa o tédio do exercício, do prazer da melodia conseguida.


terça-feira, 1 de maio de 2012

Poemas - Brincadeira com a Rua da Cochicha



A cohicha e o cochicho
foram os dois passear
ele parecia um bicho
ela levava um colar.

Discutiam vivamente
a volta que haviam de dar
porque ele não parecia gente
e ela dava que falar.

Foi na rua da Cochicha
numa tarde em Colares
que terminaram a rixa
e ele foi para outros ares.