Estávamos
no 5º ano do curso, aprendizes de feiticeiro quase a ganhar a varinha de
condão, acalentando o sonho que nos abriria as portas do futuro. Um futuro que
passaria por células, invertebrados, peixes, quiçá qualquer coisa de
interessante que poderíamos vir a descobrir.
Da
disciplina de aquacultura fazia parte o cuidar das trutas. Numa casa da
faculdade, situada junto às águas serenas da barragem do Gerês, situava-se a
estação de criação destes peixes.
O
acesso ao local era difícil, através de um caminho estreito e sinuoso, em terra
batida. Tão estreito que era à justa para permitir a passagem da carrinha que
nos transportava.
Por
isso mesmo o motorista, o Sr. Jorge, tinha ordens superiores rigorosas quanto a
deixar a carrinha junto à estrada. Essa ordem, se bem que especialmente
pertinente nos dias de tempo mais agreste, era também mais tentadora de
incumprir nesses mesmos dias. Contrapunha-se, no prato da balança, o perigo de aluimento
contra um caminho longo, mais longo
ainda para quem carregava bagagem e lutava contra a chuva.
Nessa
ida, única em que participámos, íamos quatro alunos – o Rui, o Pedro, a
Gabriela e eu – e, além de nós e do Sr. Jorge, dois professores. E lá seguimos
na carrinha através do caminho proibido, que estava deveras enlameado em
consequência das chuvadas dos dias anteriores.
Até
meio do percurso a odisseia correu bem, tendo do lado esquerdo um muro e do
lado direito o declive que conduzia directamente à albufeira. Só que a dado
momento o terreno cedeu, cansado de tanta água acumulada, e a carrinha começou
a tombar para a direita em direcção à água turva.
Foi
a única vez que me apercebi da proximidade da morte, todavia foi tudo tão
rápido que não cheguei a sentir um verdadeiro susto. Houve uns gritos, algum
alvoroço e instintivamente inclinámo-nos para a esquerda.
Tivemos
sorte. Ainda que fora da vereda, e inclinando-se perigosamente em direcção ao
declive, as rodas acabaram por prender-se nalgumas pedras, e a carrinha não
capotou água adentro. Refeitos do sobressalto, nem nos mexíamos, sentindo
metade do veículo como que a levitar.
O
Sr. Jorge recuperou a calma e conseguiu sair. Lívido, avaliou a situação e
instruí-nos para sairmos lentamente um de cada vez. Nas rugas pesava-lhe a
desobediência e a constatação que mais tarde ou mais cedo teria de se
justificar. Funcionário dedicado, receava poder vir a perder a confiança do seu
superior.
Não
havia telemóveis na época (há cerca de trinta anos atrás), por isso fizemos a
pé o resto do percurso até à casa, onde a D. Deolinda nos esperava. A D.
Deolinda, moradora da casa mais próxima da da Faculdade, era, por assim dizer,
uma espécie de caseira. Era ela quem ia olhando pelas instalações e quem, para
nosso contentamento, preparava as refeições. E foi da casa dela que o Sr. Jorge
telefonou para chamar um reboque, pois a carrinha já não tinha qualquer
hipótese de sair dali por sua conta.
Nós
éramos jovens, o susto tinha passado, e as decisões sobre a carrinha já não nos
diziam respeito. Queríamos na verdade começar o trabalho que viéramos fazer.
Sendo os únicos quatro alunos que tinham escolhido o ramo científico do curso
na área da Zoologia, parecíamos quase uma família. O Rui e o Pedro tinham
entrado no curso um ano antes de mim, a Gabriela quatro anos antes, e para eles
o professor Afonso era sobretudo um colega, pois acabara o curso no ano
anterior. Este era o seu primeiro ano como assistente estagiário e foi ele quem
nos acompanhou nas tarefas da aquacultura.
A
casa estava gelada, e nem mesmo um ventilador em cada quarto conseguia aquecer
o frio daquela manhã de Janeiro. Instalámo-nos, as raparigas num quarto, os
rapazes noutro, aí colocando os sacos cama e a nossa bagagem.
Junto
à casa existia um barracão onde era feira a criação das trutas desde a eclosão
do ovo, com vários tanques onde nadavam vigorosamente alevins (vulgo trutas
bebés) em diferentes fases de crescimento. Na albufeira, não muito longe da
margem (mas com acesso de barco), viviam as trutas adultas, em quatro grandes
redes que pendiam de estrados de madeira. Eram alimentadas automaticamente. Com
a precisão dada pelo relógio, a porta do depósito de granulado abria duas vezes
põe dia, de manhã e à noite. E era ver as trutas a saltar desesperadamente,
atropelando-se umas às outras, para obterem a única recompensa daquele
confinamento forçado.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhY0chzfg8FTXI140wyVSV8YlRK9mRsrj2xJn-c2jPmFq7hrRVki-aEuwnEti_01TX2PTzZv-ozAj_riOAx8XKr6_Bbe2F3OPKQlqWw3NTlB3Bn-d-VVgg-0bXzWHQ1XyoU8VFcTsSmvN4/s320/slbb141.JPG)
Depois
de nos acomodarmos e de calçarmos as botas de borracha começámos as nossas
tarefas. Primeiro as jangadas. Os estrados escorregadios requeriam alguma
habituação pois, carregados de limo devido à humidade permanente, mais se
assemelhavam a um ringue de patinagem. A Gabriela, mais pesada e com
dificuldade de se equilibrar, chegou mesmo a dar um valente trambolhão.
Sob
as orientações do Afonso fomos manipulando as trutas. Retirávamo-las
estrebuchando do seu refúgio, usando um camaroeiro. Depois eram obrigadas a
acalmar-se, num balde com anestésico, para que se tornassem menos fugidias.
Tínhamos de ser rápidos porque, ainda que calmas, não podiam prescindir do
oxigénio que só a água lhes podia fornecer. Eram observadas à procura de
eventuais habitantes indesejáveis, cuja identidade teríamos de recordar das
aulas de patologia. Enquanto um de nós as media, outro registava os dados
obtidos.
Com
as trutas mais adultas havia outra tarefa a executar. Para obter novos recrutas
para aquelas jangadas, era necessário recorrer à inseminação artificial. A
descendência não podia ficar assegurada da forma biologicamente prevista,
através dos encontros amorosos praticados há milhares de anos. Suspensas, e
limitadas pelas redes, as trutas não tinham espaço para a fecundação. Assim,
quer os machos quer as fêmeas, eram periodicamente retirados para a colheita
dos seus bens mais íntimos. Com a facilidade da experiência adquirida, o Afonso
mostrou-nos como pressionar suavemente o abdómen para obter, conforme o caso, o
esperma ou os ovócitos. Mais tarde a mistura mágica seria feita no anexo da
casa, proporcionando a esperança de uma nova geração de alevins.
E
assim passámos aquele dia. Estava frio mas estávamos contentes por
participarmos naquelas tarefas de aquacultura. No dia seguinte havia outro
trabalho a fazer – a montagem de uma zangada flutuante na barragem de Vilarinho
das Furnas.
Lá
fomos na carrinha, já operacional depois do acidente, armados em “engenheiros
civis”. A jangada, conhecida como jangada sueca, era constituída por uma
armação metálica, rede e bóias cor-de-rosa. Primeiro teve de ser montada em
terra, o que nos permitiu relembrar os jogos de construção da infância. Depois,
usando um barco de borracha, era arrastada para o seu local definitivo, não
muito longe da margem.
Esta
actividade ocupou-nos toda a manhã e gelou-nos até aos ossos. Os meus pés
estavam tão frios, que era penoso movê-los, e tive de os aquecer em água quente
quando voltámos à casa. O almoço foi trutas e, apesar de elas serem o motivo do
nosso trabalho, ninguém se sentiu antropófago e todos as saboreámos com o
prazer de um apetite voraz.
À tarde
deambulámos pela zona da casa, arrumámos o material e preparámo-nos para
o regresso, pois as noites começam precocemente no mês de Janeiro. Voltámos no
veículo onde tínhamos sentido ameaçada a nossa existência, que não havia
descido até à casa durante o resto da nossa estadia.
Estávamos
cansados, mas satisfeitos, porque não há nada como o trabalho prático para nos
fazer amar a teoria.