quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Viagem no Metro

Fotografia de Mário Gomes

São tantos os mundos que viajam neste Metro.
Tocam-se carinhos numa cumplicidade que enternece. Ouvem-se palavras, ecos do dia anterior. Procura-se um bocadinho mais de repouso, adormecendo num sono de sobressaltos. Há olhares sérios, de um universo sem sorrisos.
Apenas observo, espectadora de uma possível consciência comum.
 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Poemas com rima - Toca o violoncelo



Toca o violoncelo
Adoça a melodia
E o mundo parece belo
Perdendo-se na sinfonia
O músico é o instrumento
Estremece o meu coração
E num tão breve momento
A minha alma na sua mão.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Os extremófilos

Os extremófilos são microrganismos que vivem em ambientes extremos, insuportáveis à maioria dos seres vivos.



Às vezes penso que nós somos extremófilos. Vivemos sem braços, sem pernas, comunicamos piscando os olhos com o auxílio de um computador, compomos música mesmo já surdos.

Para seres com consciência, enfrentar e aceitar estas limitações das nossas capacidades humanas, é uma proeza muito maior que a de uma bactéria, que vive tranquilamente a 120 ºC!

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

TRANSCENDÊNCIA

Acordei como o tempo. E neste cinzento atravessa-se o teu sorriso, quando me contavas histórias.
E na lágrima nasce uma transcendência que torna a comunicação possível.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Poemas com rima – A menopausa

É frio, é calor
Virtudes da menopausa
Todo o corpo é um ardor
Sem que se veja uma causa.

É um constante veste e despe
De noite tapa e destapa
Isto parece uma peste
A que a gente não escapa.

Usa o leque, abre a janela
Todos olham espantados
O que se passa com ela?
Parafusos desapertados?

É um corpo diferente
Do que eu estava habituada
Mas por mais que me impaciente
Não posso fazer nada.

domingo, 25 de novembro de 2012

O guarda-chuva


Acabei de adquirir um guarda-chuva. Escolhi o azul.

O homem disse: “Este é mais caro, as varas são de fibra, não quebram quando se vira.”

Também eu queria essa fibra, que me impedisse de quebrar com a primeira rabanada de vento.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Os abutres

Os abutres são assim. Ainda o animal está moribundo, ainda o sangue timidamente lhe estremece as veias, e já o esperam.

A sua presença não deixa dúvidas, sobretudo ao animal moribundo. Talvez por isso já se apresentem de luto, mostrando-lhe a inexorabilidade da morte que se avizinha.
Lembram-me alguns funerais. Ainda decorre o velório e já se discute a herança.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

As ervas daninhas

As ervas daninhas são danadas.

Fotografia de Mário Gomes

Aproveitam qualquer bocadinho de terra, de água, para crescerem vigorosamente em todo o lado. Sem pejo, roubam a luz e os nutrientes às frágeis hortícolas, que delicadamente mantêm o seu ritmo na tentativa de nos oferecerem o seu melhor.
As daninhas não nos dão nada, mas se não tivermos cuidado, rapidamente se tornam as rainhas da horta. Por isso as arrancamos, tarefa monótona, que se quer repetida, para não lhes darmos tréguas. Para o bem da horta.
Estranhamente, não adoptamos a mesma filosofia na nossa sociedade.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Nas palavras

Nas palavras, como na música, busco o ritmo, a cadência.
Por isso são escritas e reescritas até que, mais do que revelarem um pensamento, traduzam a melodia.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Poemas com rima - Este Inverno dentro de mim


Este Inverno dentro de mim
Longas horas de chuva
Este penar sem fim
Que desde sempre me perturba.

Serei eu
Ou o meu fado?
Mas cada vez que me ergo
Olham-me com desagrado.

E oiço uma voz que me diz
Não desistas, faz um esforço.
Mas sinto que é por um triz
Que não me afundo num poço.

domingo, 11 de novembro de 2012

CHORAR


Queria chorar tudo agora. 
Em jeito de catarse, libertar-me da mágoa, dos medos, da dor do mundo. Para que as palavras não sejam ameaças, as pessoas obstáculos. 
Para poder acreditar de novo.

sábado, 10 de novembro de 2012

Em jeito de rap...


Sou lixado
Formatado
Jogado para o lado.

Não encaixo
Cabisbaixo
O que faço não despacho.

Sou diferente
Contundente
Ameaça a muita gente?

Deprimido
Sem sentido
Pareço um animal ferido.

E por isso
Qual sufixo
Pregaram-me num crucifixo.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O artista

O artista
Vejo-te nos teus desenhos. A morder a língua na tua concentração. Feliz. Mais tarde a esfregar a cabeça como que libertando ideias aprisionadas. Vejo-te novamente criança, tímido, a dizer com tristeza que pensavas coisas que os teus colegas nunca pensavam.
Vejo-te crescer numa solidão que te foi dura, colmatada apenas pelo mundo imaginário que construías. E que moldavas. Mais tarde reescrevias.
Vejo como desabrochaste. Como ferido por demasiada sensibilidade, sobreviveste e te tornaste um artista. Como transformaste ideias, lampejos do teu imaginário, em imagens de profundidade e beleza que todos apreciam.
Vejo como os teus 25 anos jovens, mas maduros, abarcam uma cultura que a alguns assusta porque, anquilosados nos seus anos mal vividos, não aceitam que os ultrapasses. E nada é mais fácil do que apelidar-te de imaturo, ignorar a tua obra, e abusar da tua complacência, que te leva a partir do princípio que somos todos boas pessoas.
Vi-te ontem feliz, sensato, a usar a palavra oral como tua aliada, o tímido que enfrentou o público do seu primeiro filme com o orgulho da missão bem cumprida.
Uma vitória amarga, eu sei, um parto doloroso, mas a “criança”, a obra, está viva e recomenda-se. E realizaste o teu sonho. O resto são pormenores…
Como tu disseste ao teu público, “abracem um projecto, acreditem nele, e levem-no até ao fim”. E todos acreditámos e, depois do que vimos, soubemos que temos razões para acreditar.

sábado, 3 de novembro de 2012

O arco-íris


Tecnicamente o arco-íris resulta da decomposição da luz nos diversos comprimentos de onda que a compõem, quando atravessa as gotas de água. Por isso aparece quando, nos dias chuvosos, surgem alguns raios de sol. Esta contradição entre o sol e a chuva está bem patente na sabedoria popular, quando se diz: “Sol e chuva, casamento da viúva”.



Assim o arco-íris, simples fenómeno físico, é a pintura colorida, num cinzento dia de chuva. E bem bonito!

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Poemas - Música



Preciso de música

De me perder nos acordes

Para que a tristeza se escoe

E na serenidade que me envolve

Encontrar o meu refúgio.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

SAUDADE


Choro por ti ainda em vida.

Uma vida que se escoa ao sabor dos dias que passam. Já uma sombra, um esgar, de outros dias que já não eram bons. Inexorável, esgota-se em cada respiração, em cada sono, em cada palavra não dita.

E são tantas, agora, as palavras não ditas. Ficam no olhar, no gesto, na lágrima. E assim partilhamos o silêncio, como se de uma melodia se tratasse.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Debaixo do lenço

Debaixo do lenço há uma luta surda difícil de compreender e que transparece nas sobrancelhas inexistentes.
Os olhos azuis perdem-se numa cara bonita, onde as rugas não conseguiram triunfar.
E para que não restem dúvidas, sai na paragem do IPO.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Caminho errado


Prosseguir pelo caminho errado é uma forma de obstinação que não compreendo.

Porque uma coisa é defender um ideal em que só nós acreditamos, uma utopia que, quem sabe, um dia, se pode tornar realidade. Outra é já se ter visto que não é utopia, é um pesadelo, muito próximo do terror nocturno.

Seguramente que quem nos governa sofre de sonambulismo. Só assim percebo que caminhe para o precipício sem qualquer medo de cair.

domingo, 14 de outubro de 2012

COMER



Ver alguém fazer esforço para comer é algo que me dói de forma visceral. Dos recônditos da memória invadem-me, sem que de isso me aperceba, as longas horas da minha infância passadas à mesa.

A mesma luta contra a comida que nunca mais desaparecia do prato. O arroz que era afogado com água, reconstruído num grande círculo, fantasiado num bolo e depois cortado em fatias. Para que assim escorregasse melhor.

O menu que me era apresentado não fazia qualquer diferença, porque inexoravelmente era vítima desta violência gastronómica. Entre mim e a comida não havia qualquer respeito e eu tratava-a com o desprezo que a minha anorexia lhe merecia.

É por isso que quando vejo o teu esforço para comer, a criança sem apetite reaparece, toca-me no braço, e sussurra-me: “Por favor, tira-lhe o prato!”

sábado, 13 de outubro de 2012

DESENCANTO


Eu julgava que vivia num país de que me orgulhava. Um país com história, um país ávido de descoberta, que deu novos mundos ao mundo.

Mas agora, invertendo a rota dos descobrimentos, que tanto conhecimento e reputação nos trouxe, esvaziamo-lo promovendo a saída, tantas vezes definitiva, do que temos de melhor.

Escandalosamente, os nossos governantes apregoam isso mesmo, que continuemos a investir na educação para que os nossos jovens emigrem. Aqui não há nada para eles.

Já agora, porque não perdem a vergonha de uma vez por todas, e vendem o país? Que seja agora, e não depois a preço de saldo, quando a miséria for tão grande que ninguém o vai querer.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

ROSTOS

Há rostos que nunca mudam. Rostos onde nem mesmo o tempo, nem as rugas, conseguiram apagar o olhar de menino.
Rostos, onde a todo o momento se espera, que as mãos de velho, retirem do bolso um carrinho de brincar.

domingo, 7 de outubro de 2012

Impotência


Afundado na dor. Procurando no tecto do quarto uma qualquer transcendência que explicasse a inutilidade dos dias.

Subtraído o poder de decisão, condenado a um momento intemporal que alivie o sofrimento, são poucas as atitudes a tomar.

Alhear-se do mundo, não falar, não comer, recusar-se a ingerir pastilhas que, além do mais, não surtem o efeito desejado. Qualquer coisa que abrevie a espera, a degradação morosa e inevitável.

São estes os gritos silenciosos da revolta possível, num fim não escolhido e que se queria pacífico.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Poemas com rima - Estava a gaivota a caminhar…

Dona gaivota
Toda janota
Vai no passeio
Tolo devaneio.

Porque não voa?
A asa não está boa?
Ou será que deseja
Uma ida à igreja?

E assim continua
Dona da rua
E no seu ir e vir
Parece sorrir.

domingo, 30 de setembro de 2012

Correm as lágrimas

Correm as lágrimas. Deixa-as correr. Deixa fluir a mágoa. Desse rio que tudo arrasta, o sorriso irá nascer.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O outro

Há o meu pai e o outro, que agora nele vive. Neste conflito, que é também o meu conflito, refugio-me nas memórias, nas fotografias espalhadas pela casa. Não quero que o outro se apodere de mim.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Começa o dia


O meu Porto desperta. Ao fundo a ponte da Arrábida, num contraluz de nuvens acesas. Atravessam-na automóveis que parecem de brinquedo.

Há qualquer coisa de mágico no voo das gaivotas. Gritos de liberdade atravessam a alvorada.

Fotografia de Mário Gomes

Um cão atravessa a rua disparado atrás de um gato preto. Salvo pelo muro, o gato levou a melhor.

Deslumbro-me neste instante. Até que chega o autocarro.

sábado, 22 de setembro de 2012

O fotoperíodo da lucidez


Sou uma pessoa mais lúcida quando acordo. Vá-se lá saber porquê, é naquele limbo entre os sonhos nocturnos e o despertar, às vezes mesmo atravessando a insónia, que os meus pensamentos se clarificam, que a vida se dispõe a uma análise clínica, uma capacidade que se perde ao longo do dia.

Sou assim. Não me peçam grandes discernimentos ao fim do dia. Nada. Não sou capaz de analisar criteriosamente qualquer problema a resolver, com a distância e a imparcialidade que ele exija. Deixo-me dominar por todas as emoções e vivências do dia, qual borboleta tonta que invariavelmente bate contra a lâmpada acesa.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

A velha


Sentada no banco. Sozinha. O dia ainda mal acordou. As mãos enrugadas, com as fissuras que o frio não perdoa, retiram algumas migalhas do não menos enrugado saco de plástico.

Tremulamente são lançadas no passeio. E o arrulhar, terno embalo, vai-a envolvendo. Esvoaçam, saltam frenéticas, estas amigas de asas. Procuram o pão que a velha cedeu, para ganhar o seu carinho.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Acupunctura


Dos outros cubículos chegam-me vozes, queixas, dores. As perguntas a que até agora ninguém respondeu. A esperança de cura em múltiplas histórias de sofrimento crónico.

Lentamente, deixo as palavras perderem-se na música suave que me envolve. E quase adormeço...

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Poemas com rima - Sr. Ministro


Em consciência
E sem trapaça
Diga Excelência
O que se passa.

É a insolvência
Que nos ameaça?
Tenha lá paciência
Já estamos em desgraça.

Mais uma cedência
Que nos ultrapassa
Tenha decência
Tire a quem tem massa.

Às PPPs deve obediência?
Aos que vivem na rabaça?
Não é preciso muita ciência
Para acabar com esta chalaça.

sábado, 8 de setembro de 2012

O som do mar


A onda diz: vou, mas volto. E no regresso se espraia no areal. Deixa a espuma e já se vai. Volta calma, ou revolta. E nesse embalo me perco, nessa música adormeço.
Fotografia de Mário Gomes

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Bom dia, Mia

Bom dia, Mia
Pedacinho de alegria
És a nossa companhia.

Andas à caça da traça
Da borboleta que passa
E depois vem a rabaça.

Mas quando a casa chegamos
Lá nos vens receber
Espreguiçando-te até mais não poder.


quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Poemas - Entre mim e ti


Entre mim e ti
há um universo construído
uma sintonia
que não carece de palavras.

Como na melodia
em que o andamento seguinte
se adivinha
a tua alma rima com a minha.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Poemas com rima – Porque escrevo

Escrevo
Porque vivo
Porque sinto todo o enlevo
Todo o crivo
Toda a emoção que me envolve
Tudo o que não se resolve.

E às palavras confio
Numa escrita tão incerta
Todo esse desvario
Que só assim se liberta.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

A terceira idade, a segunda infância


Duas classificações para o mesmo estado, que no entanto são deveras antagónicas.

Se a primeira dá ideia de maturidade, a segunda é manifestamente uma descida de posto. É uma comparação perversa, pois perdemos a inocência, a candura, a curiosidade que caracterizavam a infância.

Os comportamentos infantis não a devolvem (a relatividade do tempo não chega a esse requinte), e não são mais do que actos de desespero.

domingo, 2 de setembro de 2012

O quarto da minha infância


Este é o quarto da minha infância.

Alguns móveis mudaram, há objectos que não me pertencem. Mas permanece o fio que acende o candeeiro em cima da cama. O que me deu autonomia para ir sozinha à casa de banho durante a noite.

O meu corpo já não é o corpo desse tempo. O do meu pai também não. Preso num corpo que já não lhe obedece, que já não o respeita, e que o maltrata com uma dor constante.

Custa ver chorar os filhos, mas não custa menos ver chorar os pais. As suas lágrimas perdem-se nas minhas.

Não podemos sequer fingir acreditar num novo dia, a sua lucidez não o permite.

Acaricio-lhe o cabelo, a face, as mãos outrora tão poderosas. E desejo-lhe a paz, neste quarto pleno dos testemunhos desse poder.


quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Doença – ao que nós chegamos…

Somos o que nos habituámos a ser. E aquilo que conhecemos, de nós mesmos, e do mundo, traz-nos segurança.
Quando mais nada preenche os nossos dias, a não ser as rotinas do corpo que julgávamos possuir, a isso nos agarramos.
Não queremos mudar. Os velhos hábitos, agora inimigos do nosso bem-estar, são todavia o que resta da nossa comunicação com o mundo. Por isso os conservamos, como uma qualquer forma masoquista de afirmação, o único poder que ainda sentimos possuir.
É uma ilógica tirania, que sobretudo martiriza aqueles que mais amamos. E sabemo-lo. Mas, numa dualidade que não conseguimos resolver, a ela recorremos para continuarmos vivos.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Deixar partir

O mais difícil é deixar partir.
Os filhos, que já ganharam vida própria ainda antes de saírem de casa. Os pais, que arrastam as suas dores porque o corpo chegou ao fim. As palavras, que um amigo disse de forma agressiva num momento de desacordo.
Queremos controlar, agarrar, fazendo de tudo tábuas de salvação, como se fossemos náufragos.
Bem faríamos em deixarmos de esbracejar, na tentativa de não nos afundarmos. Apenas flutuarmos na maré.


sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Saída de campo


Estávamos no 5º ano do curso, aprendizes de feiticeiro quase a ganhar a varinha de condão, acalentando o sonho que nos abriria as portas do futuro. Um futuro que passaria por células, invertebrados, peixes, quiçá qualquer coisa de interessante que poderíamos vir a descobrir.

Da disciplina de aquacultura fazia parte o cuidar das trutas. Numa casa da faculdade, situada junto às águas serenas da barragem do Gerês, situava-se a estação de criação destes peixes.

O acesso ao local era difícil, através de um caminho estreito e sinuoso, em terra batida. Tão estreito que era à justa para permitir a passagem da carrinha que nos transportava.

Por isso mesmo o motorista, o Sr. Jorge, tinha ordens superiores rigorosas quanto a deixar a carrinha junto à estrada. Essa ordem, se bem que especialmente pertinente nos dias de tempo mais agreste, era também mais tentadora de incumprir nesses mesmos dias. Contrapunha-se, no prato da balança, o perigo de aluimento contra um  caminho longo, mais longo ainda para quem carregava bagagem e lutava contra a chuva.

Nessa ida, única em que participámos, íamos quatro alunos – o Rui, o Pedro, a Gabriela e eu – e, além de nós e do Sr. Jorge, dois professores. E lá seguimos na carrinha através do caminho proibido, que estava deveras enlameado em consequência das chuvadas dos dias anteriores.

Até meio do percurso a odisseia correu bem, tendo do lado esquerdo um muro e do lado direito o declive que conduzia directamente à albufeira. Só que a dado momento o terreno cedeu, cansado de tanta água acumulada, e a carrinha começou a tombar para a direita em direcção à água turva.

Foi a única vez que me apercebi da proximidade da morte, todavia foi tudo tão rápido que não cheguei a sentir um verdadeiro susto. Houve uns gritos, algum alvoroço e instintivamente inclinámo-nos para a esquerda.

Tivemos sorte. Ainda que fora da vereda, e inclinando-se perigosamente em direcção ao declive, as rodas acabaram por prender-se nalgumas pedras, e a carrinha não capotou água adentro. Refeitos do sobressalto, nem nos mexíamos, sentindo metade do veículo como que a levitar.

O Sr. Jorge recuperou a calma e conseguiu sair. Lívido, avaliou a situação e instruí-nos para sairmos lentamente um de cada vez. Nas rugas pesava-lhe a desobediência e a constatação que mais tarde ou mais cedo teria de se justificar. Funcionário dedicado, receava poder vir a perder a confiança do seu superior.

Não havia telemóveis na época (há cerca de trinta anos atrás), por isso fizemos a pé o resto do percurso até à casa, onde a D. Deolinda nos esperava. A D. Deolinda, moradora da casa mais próxima da da Faculdade, era, por assim dizer, uma espécie de caseira. Era ela quem ia olhando pelas instalações e quem, para nosso contentamento, preparava as refeições. E foi da casa dela que o Sr. Jorge telefonou para chamar um reboque, pois a carrinha já não tinha qualquer hipótese de sair dali por sua conta.

Nós éramos jovens, o susto tinha passado, e as decisões sobre a carrinha já não nos diziam respeito. Queríamos na verdade começar o trabalho que viéramos fazer. Sendo os únicos quatro alunos que tinham escolhido o ramo científico do curso na área da Zoologia, parecíamos quase uma família. O Rui e o Pedro tinham entrado no curso um ano antes de mim, a Gabriela quatro anos antes, e para eles o professor Afonso era sobretudo um colega, pois acabara o curso no ano anterior. Este era o seu primeiro ano como assistente estagiário e foi ele quem nos acompanhou nas tarefas da aquacultura.

A casa estava gelada, e nem mesmo um ventilador em cada quarto conseguia aquecer o frio daquela manhã de Janeiro. Instalámo-nos, as raparigas num quarto, os rapazes noutro, aí colocando os sacos cama e a nossa bagagem.

Junto à casa existia um barracão onde era feira a criação das trutas desde a eclosão do ovo, com vários tanques onde nadavam vigorosamente alevins (vulgo trutas bebés) em diferentes fases de crescimento. Na albufeira, não muito longe da margem (mas com acesso de barco), viviam as trutas adultas, em quatro grandes redes que pendiam de estrados de madeira. Eram alimentadas automaticamente. Com a precisão dada pelo relógio, a porta do depósito de granulado abria duas vezes põe dia, de manhã e à noite. E era ver as trutas a saltar desesperadamente, atropelando-se umas às outras, para obterem a única recompensa daquele confinamento forçado.


Depois de nos acomodarmos e de calçarmos as botas de borracha começámos as nossas tarefas. Primeiro as jangadas. Os estrados escorregadios requeriam alguma habituação pois, carregados de limo devido à humidade permanente, mais se assemelhavam a um ringue de patinagem. A Gabriela, mais pesada e com dificuldade de se equilibrar, chegou mesmo a dar um valente trambolhão.
Sob as orientações do Afonso fomos manipulando as trutas. Retirávamo-las estrebuchando do seu refúgio, usando um camaroeiro. Depois eram obrigadas a acalmar-se, num balde com anestésico, para que se tornassem menos fugidias. Tínhamos de ser rápidos porque, ainda que calmas, não podiam prescindir do oxigénio que só a água lhes podia fornecer. Eram observadas à procura de eventuais habitantes indesejáveis, cuja identidade teríamos de recordar das aulas de patologia. Enquanto um de nós as media, outro registava os dados obtidos.

Com as trutas mais adultas havia outra tarefa a executar. Para obter novos recrutas para aquelas jangadas, era necessário recorrer à inseminação artificial. A descendência não podia ficar assegurada da forma biologicamente prevista, através dos encontros amorosos praticados há milhares de anos. Suspensas, e limitadas pelas redes, as trutas não tinham espaço para a fecundação. Assim, quer os machos quer as fêmeas, eram periodicamente retirados para a colheita dos seus bens mais íntimos. Com a facilidade da experiência adquirida, o Afonso mostrou-nos como pressionar suavemente o abdómen para obter, conforme o caso, o esperma ou os ovócitos. Mais tarde a mistura mágica seria feita no anexo da casa, proporcionando a esperança de uma nova geração de alevins.

E assim passámos aquele dia. Estava frio mas estávamos contentes por participarmos naquelas tarefas de aquacultura. No dia seguinte havia outro trabalho a fazer – a montagem de uma zangada flutuante na barragem de Vilarinho das Furnas.

Lá fomos na carrinha, já operacional depois do acidente, armados em “engenheiros civis”. A jangada, conhecida como jangada sueca, era constituída por uma armação metálica, rede e bóias cor-de-rosa. Primeiro teve de ser montada em terra, o que nos permitiu relembrar os jogos de construção da infância. Depois, usando um barco de borracha, era arrastada para o seu local definitivo, não muito longe da margem.

Esta actividade ocupou-nos toda a manhã e gelou-nos até aos ossos. Os meus pés estavam tão frios, que era penoso movê-los, e tive de os aquecer em água quente quando voltámos à casa. O almoço foi trutas e, apesar de elas serem o motivo do nosso trabalho, ninguém se sentiu antropófago e todos as saboreámos com o prazer de um apetite voraz.

À tarde deambulámos pela zona da casa, arrumámos o material e preparámo-nos para o regresso, pois as noites começam precocemente no mês de Janeiro. Voltámos no veículo onde tínhamos sentido ameaçada a nossa existência, que não havia descido até à casa durante o resto da nossa estadia.

Estávamos cansados, mas satisfeitos, porque não há nada como o trabalho prático para nos fazer amar a teoria.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Farrapo humano


Porque te conheci, noutro tempo, noutra vida, os olhos ainda azuis de água, e os caracóis de príncipe, não consigo agora olhar-te.

Magro, trémulo, os olhos azuis de água perdidos nas rugas fundas, tão precoces. Sempre nos mesmos sítios, a ver passar os dias, a pedir para matar a fome, ou a ressaca.

E a única coisa em que eu consigo pensar, evitando ver o farrapo em que te tornaste, é como ainda estás vivo.

terça-feira, 31 de julho de 2012

VENTO


Um vento fresquinho que entra pela janela e agita os meus pensamentos. Um arrepio na pele que mais parece um agitar da lama, onde as emoções se enredam e confundem.
Sentir-me parte da natureza que me envolve. O vento refresca-me e diz-me que me deixe ir.


domingo, 29 de julho de 2012

Pôr do Sol


Fotografia de Mário Gomes


Lentamente o dia apaga-se numa exuberância de fogo. O sol é agora uma bola laranja que se derrete no mar.

A luz intensa deu lugar a esta energia suave, onde já podemos descansar o olhar. O momento é mágico. Amanhã haverá um novo fulgor.

E assim aprendemos a viver um dia de cada vez.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Tábuas de salvação


Agarramo-nos a qualquer coisa. A objectos. Se calhar mais do que as pessoas, são agora os objectos que garantem a nossa sobrevivência.

Com o passar dos dias indiferentes, são a nossa ténue ligação ao mundo. Tábuas de salvação num naufrágio, de onde sabemos que não seremos resgatados.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Há dias assim...

Há dias assim, em que nos levantamos da cama e só nos apetece abraçar toda a gente. Especialmente os desconhecidos, na tentativa de mostrar a empatia que sentimos em sermos todos humanos. São dias em que acreditamos no futuro, que o sol vai descobrir, a comida do almoço (ainda que requentada do dia anterior) está uma maravilha.

Não aconteceu nada de especial, pelo menos que saibamos explicar, a não ser que acordámos assim.

Outros dias há em que acontece o contrário, e apenas conseguimos ver o lado negro de tudo. Mas desses, não falaremos agora.

terça-feira, 17 de julho de 2012

O cuco


A fêmea do cuco coloca os seus ovos nos ninhos de outras aves. Como tal não tem as preocupações comezinhas de construir um ninho, incubar os ovos, alimentar as crias.



Durante vários dias observa outras aves, as suas potenciais vítimas. Na primeira oportunidade deposita um dos seus ovos no ninho dessas aves, dele retirando um dos ovos originais, para que a dona do ninho não detecte o logro. E, como um serial killer, repete várias vezes esta operação.

O seu ovo geralmente eclode mais cedo, e o recém-nascido, numa atitude de grande eficácia, elimina os outros ovos, ou eventuais crias já nascidas.

Praticamente a custo zero, o cuco  consegue os seus objectivos:  reproduzir-se, passar os seus genes. Impõe a sua presença às outras aves, que funcionam como “pais adoptivos”, criando os seus filhos. Explora-as numa atitude descarada, de quem sabe que levou a melhor na luta pela sobrevivência.