sábado, 31 de março de 2012

Ainda o envelhecimento

É estranho como, quando envelhecemos, mudamos tanto de fisionomia, a ponto de outros rostos familiares se apropriarem do nosso rosto.

Olho para ti e vejo a avó, e essa confusão de seres é ao mesmo tempo perturbadora e agradável. Já vi isto acontecer com outras pessoas, mas tu és a que me está mais próxima.

Os gestos, o olhar, o sorriso. Não sei se a velhice tem algum poder uniformizador.

terça-feira, 27 de março de 2012

A espécie humana

Como espécie, não somos grande coisa. Tornámos vulgar o que os outros animais raramente fazem – matar os seus pares. E quando o fazem é em situações extremas. Lutar por uma fêmea disponível (o que nem sempre é o nosso caso, que muito gostamos de cobiçar a do parceiro), para poder acasalar. Defender a prole ou a comunidade.

Nós somos pródigos em conflitos. Será porque, há quem diga, estamos mais adequados a viver em pequenos grupos sociais de não mais de 150 indivíduos, e em vez disso construímos aglomerados gigantescos, onde nem sequer conhecemos os 150 humanos mais próximos?

Estranha evolução esta, que nos premiou com a capacidade de pensar, para agora discorrermos sobre a melhor forma de nos liquidarmos uns aos outros.




segunda-feira, 26 de março de 2012

Ainda a tia

A tia andava sempre bem vestida. Tinha roupa e adereços muito bonitos. A vida levou-lhe o amor, mas ela não deixou que lhe trouxesse a amargura.
Nós fomos os filhos que não teve. Eterna cuidadora, não quis que ninguém cuidasse dela. Por isso, partiu como sempre viveu, independente.

domingo, 25 de março de 2012

MEMÓRIAS

Enche-se-me a cabeça de memórias nestes dias difíceis. Sensações. Odores. Gestos. Rostos que já não vejo. Refúgio da saudade e da melancolia, a infância vem adormecer o meu sofrimento.

Tentativa vã de preservar o que já não existe.

sábado, 24 de março de 2012

Em casa da tia

Em casa da tia havia ginjinha. A tia não a bebia, mas fazia para os outros. Como muitas outras coisas que ela fazia para os outros.

Nós, as crianças, também não a bebíamos, claro, mas “roubávamos” as ginjas, com umas longas colheres de plástico, próprias para o efeito.

Era quase mágico, a cor da bebida, as ginjas doces e alcoólicas, as garrafas de vidro sempre tão bonitas, o prazer do fruto e daquele furto consentido.

E de todos os momentos preciosos que a tia nos proporcionou, a saudade desencantou o sabor das ginjas.

quarta-feira, 21 de março de 2012

SAÚDE

Alguém disse que a saúde é um estado transitório que não inspira nada de bom. Posso não estar a ser fiel às palavras originais, mas sou-o à ideia.

É certo que esta frase traduz um forte exagero, já que por natureza, o nosso organismo é saudável, com os diversos sistemas, quais notas na partitura, construindo a nossa música de fundo. Ou o silêncio do corpo, como também alguém já referiu.

Mas é olhando para ti, tão frágil, e ao mesmo tempo tão sereno (e tão bonito), na luta contra uma febre de origem desconhecida, que esta tua frase predilecta me vem à ideia.

segunda-feira, 19 de março de 2012

RIMAR

Rimar nunca foi comigo
regras para escrever
não fazem sentido.

Deixar as palavras fluir
procurar a sua cadência
não ter de as repelir
por falta de anuência.

Mas se quero um ritmo
à laia de canção
rendo-me à evidência
de que as rimas têm razão.

sábado, 17 de março de 2012

CORAÇÃO

Contracção. Relaxamento. Contracção. Relaxamento. A um ritmo quase musical bombeia o sangue no organismo. Nada mais típico de uma máquina afinada, então porque é tido como refúgio dos nossos sentimentos? Talvez por ser o coração um órgão vital para todo o corpo.



Numa aparente encontro entre ficção e realidade sabe-se cada vez mais que o coração e o cérebro estabelecem no nosso corpo um constante diálogo, influenciando-se mutuamente. Raiva, ansiedade, frustração, desafinam esta máquina, causando no coração padrões erráticos de batimento. Com o tempo podem causar sérios problemas de saúde.

Não sei se o tempo nos virá a mostrar que o coração é algo mais do que uma bomba propulsora, é parte da nossa essência. Isso poderá tornar estranho o transplante cardíaco, mas fará o coração ganhar o que a tradição popular sempre lhe atribuíu.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Amizades

Levei tempo, talvez demasiado tempo, mas tenho vindo a reencontrar as velhas amizades. E dou-me conta que, apesar do tempo, continua tudo lá. Nós somos outros, no entanto mantivemos muito do que partilhámos, e representamos ainda um elo seguro nesta corrente do tempo.
Chega até a ser estranho, passadas tantas rugas, com vidas tão distantes, reatarmos diálogos, como se tivéssemos acabado de nos afastar.

terça-feira, 13 de março de 2012

Tinha 19 anos...

A Teresa tinha 19 anos, uma vida pela frente, um aborto que não correu bem, e sobretudo a angústia da decisão tomada.

Com que direito aquele ser indesejado se tinha instalado anonimamente no seu ventre, disposto a roubar-lhe os sonhos? Mas por outro lado, como seria ele? Como não sentir que estava presa nessa teia, que já os unia, desde o primeiro momento em que o adivinhou?

Falou com a companheira do quarto. Partilhar o fardo da angústia poderia trazer-lhe alívio, apesar de nada saber dela, a não ser que se chamava Luísa e que acabara de ter um bebé. E isso tornava a sua dor ainda mais penosa. Mas uma desconhecida, limitar-se-ia a ouvir, sem se aventurar nas críticas que só a confiança permite.

Estava tão triste, tão desapoiada… Parte dela lutava ainda por esse bebé que já não existia, apesar da negação dos pais e do namorado.

A Luísa ouviu-a, mas não teve a coragem de lhe dizer o quanto entendia a sua angústia.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Os óculos

Sendo-me indispensáveis (pelo menos se eu quiser continuar a ter as letras no meu mundo), sinto-os como um empecilho. Não consigo ignorá-los e o incómodo é tal que todas as oportunidades são boas para deles me livrar. Cozinhar, comer, andar na rua. E lá vão ficando perdidos nas mais diversas paragens. E, invariavelmente, vou andar à sua procura.



No entanto, com o aumento da presbiopia (vulgo vista cansada), já não posso manter esta independência. Já não vejo as espinhas do peixe, não leio os rótulos das embalagens, não vejo as mensagens do telemóvel.

E mais não me resta do que aceitar que este objecto, aparente barreira entre mim e o mundo, é a muleta que nele me permite continuar a caminhar.

domingo, 11 de março de 2012

Odores

Numa hora imprópria, lanchávamos, a conversa desviou-se para os odores corporais, mais propriamente para os maus odores. Vá-se lá saber porquê.

A sensibilidade olfactiva, tal como todas as nossas características, era muito diversa. Do cheiro a suor, a ranço (provavelmente apanágio de um corpo / roupa com hidrofobia) até aos odores que fogem ao nosso controle, como o das feridas infectadas, cada um tolerava como podia.

E assim se passou a hora do lanche.

sábado, 10 de março de 2012

A roupa no varal


Com o vento as camisas esbracejavam no varal. E era um montão de roupa para passar, arrumar e, em breve, voltar a lavar.

                                                           Fotografia de Mário Gomes

A roupa revolteava. Ela não. Não havia tempo para se lembrar como o amor, promessa de liberdade, se transformara na sua prisão.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Ecografia

Cheguei às 8h30. Aliás às 8h15, com os 15 minutos de antecedência recomendados. De nada me serviu porque, após esperar por vários internamentos já fui atendida no guiché fora de horas. “Pode sentar-se que o médico chama.”
Obedeci. Eu e mais uns quantos que já aqui apodreciam antes de mim. Entretanto, a única funcionária do guiché desapareceu, há todo um vai e vem de personagens a entrar e sair, mas ninguém chama ninguém.
O espaço é agradável, sofás coloridos. Já várias vezes passaram os mesmos auxiliares, com macas, oxigénio, trouxas de roupa. Partilham o estranho fenómeno de serem altos. Será que neste serviço, em vez de cirurgia vascular, fazem crescer as pessoas?
Veio agora um enorme caixote do lixo, “transporte de resíduos”. É na verdade o que já nos sentimos, por isso não ficaria espantada se me dissessem para nele entrar. Segue-se o carrinho da limpeza, o da comida, pena que não haja o da paciência. E talvez por isso a minha vizinha da frente lê a “Bíblia Sagrada”.
Duas horas depois, fui finalmente aviada, mas não antes de eu ter ido reclamar.

terça-feira, 6 de março de 2012

A avó

Uma avó que ficasse cá em casa para sempre. Era o que eu pedia à minha mãe. A avó estava longe, mas era totalmente minha de vez em quando.
Fazíamos malha. Foi a avó que me ensinou, com agulhas sem barbela. Os erros, os chamados gatos (será porque os gatos gostam de perturbar esta actividade, emaranhando os novelos?) era ela que os desfazia.
Legou-me a rapidez do trabalho. Eu era o seu capataz. “Só fizeste isso?” Mas na verdade a avó já estava na outra manga. Fazia tudo o que lhe pedíssemos, vestiu-nos durante anos, lindas camisolas dignas das revistas.
Outro encanto eram as histórias. “Conta-me as histórias de quando o meu pai era pequenino…” O meu tio que rachou a cabeça no pote, o meu pai que começou a sua actividade de escultor com o conteúdo da fralda. E mais para trás, o linguado da cerimónia, na mesa das tias-avós, então moças casadoiras, que de tanto ser recusado acabou no chão da sala.
Fosse nas histórias, ou na malha, toda a avó era ternura e paciência. Fica-me a imensa saudade.

domingo, 4 de março de 2012

A gata que arrulha

A Mia, desde que chegou cá a casa há cerca de um ano, que tem um ronronar que, no mínimo, é sui generis. Arrulha. Parece uma daquelas ocarinas de água, em que se sopra e o gorgolejar da água emite o som de um passarinho. Quanto mais satisfeita, maior é a intensidade do seu arrulhar.
Será uma crise de identidade? Achar-se-á uma rola? É verdade que, sendo gata, cujo movimento felino não desmente, não gosta de peixe. Cozido ainda vai algum. Cru, depois de devidamente cheirado, é votado ao desprezo. Observa-me, abre e fecha a boca, sem miar, como que a dizer: “Não vês que os pássaros não comem peixe?”



Se calhar é melhor dar-lhe alpista…

sexta-feira, 2 de março de 2012

Cheira a terra molhada

Choveu. Chuva tímida, é verdade, coisa pouca após tanta espera. Não justificou o passeio dos guarda-chuvas, não saciou as plantas, não deixou marcas nos pavimentos. Nem se ouviu.
Dei conta pelo intenso cheiro a terra molhada. Como se de um dia de fim de Verão se tratasse. Que inalado me trouxe a imensa alegria da vida.

quinta-feira, 1 de março de 2012

O difícil despertar

Sete da manhã. Começa a sinfonia dos vários despertadores. Alguns mais “zombies” que outros, começam a circular pela casa.
O dom da linguagem não existe a esta hora matutina. Se faço perguntas (quem no seu perfeito juízo faz perguntas a esta hora?), respondem-me grunhidos. Chego a ter dúvidas se acordei entre membros da espécie humana.
Mas a culpa é minha. Como é possível acordar com toda a energia que eu emano? Como? É a interrogação que se espelha nos olhos inchados e cabeleiras desgrenhadas que me rodeiam.