sexta-feira, 29 de junho de 2012

HOTÉIS



Os hotéis, em Portugal, não param de surpreender-me.

Há poucos dias pernoitámos num hotel em Coimbra. O quarto apresentava várias deficiências, como a falta de uma mesinha de cabeceira, de toalhas, sabonete, e um chuveiro que mal pingava água. Enfim, como o preço era barato, dei o devido desconto…

A cereja no topo do bolo (neste caso, talvez um ruibarbo no topo do bolo) foi o pequeno-almoço no dia seguinte. Amavelmente anunciaram que este aditamento à dormida era diferente dos outros hotéis. Tínhamos chás, pão, o restante seria dispensado via máquinas, e podíamos servir-nos à vontade. Para tal forneciam uma ficha (uma para as duas pessoas), tipo carrinhos de choque, que uma vez introduzida na ranhura da máquina, nos daria o desejado pequeno-almoço.

Bem, estava tudo na máquina, desde a manteiga à água quente para o chá, e foi num ápice que este servidor de pequenos-almoços mecânico recusou continuar a servir-nos. Descobrimos que já não havia crédito e tive de me contentar com meio pequeno-almoço. A partir desse momento podia continuar a servir-me se pagasse. No mínimo, uma interpretação abusiva do “podem servir-se à vontade”. Nem deu para um café.

Um pormenor interessante – a máquina tinha toda a informação na língua lusa (e muito bem), mas nada em inglês. Como a maioria dos clientes eram estrangeiros, a simpática menina da recepção ia e vinha, traduzindo todo o menu em inglês. Uma lista de 10 ou mais maneiras de obter café ou chá.

O lema deve ser que um estrangeiro com boa memória será capaz de tomar a sua bebida a gosto.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Um homem de palavra


Era um homem de palavra. Palavra?

Do que dizia não arredava, a não ser que se enganasse. Claro que isso lhe trazia dissabores. A honestidade não é algo que a sociedade promova. Por isso, na hora da verdade, era a sua cabeça que rolava.

Mas assim ele se fazia grande, pois começar a ceder sem razão seria o início de uma descida sem fim.

E assim se fez conhecido – um homem de palavra.

domingo, 24 de junho de 2012

RUPTURA


Todos os materiais têm elasticidade, capacidade de deformação, voltando à posição inicial. Quando o limite é ultrapassado, dá-se a ruptura, o material já não pode deformar-se mais, quebra.



Uns materiais são mais elásticos do que outros, mas todos têm o seu limite. É por isso que temos tremores de terra. As rochas são submetidas a esforços de compressão ou de tração que excedem o seu limite de resistência. A ruptura que então ocorre causa a libertação de uma grande quantidade de energia, a qual gera as ondas sísmicas que se propagam em todas as direcções.

Nós não somos materiais, mas também temos limites de ruptura. Pressionados, qual elástico, vamo-nos deformando, adaptando, na esperança de, passado o sufoco, voltarmos à posição inicial. Com mais ou menos sequelas. Mas a partir de um certo momento, se a pressão não diminui, podemos atingir a ruptura, e temos direito ao nosso tremor de terra.

Depois, é verdade, resta-nos a possibilidade (nem sempre fácil) de reconstruir.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

As palavras

As palavras são armas poderosas. Pronunciadas, ou escritas, têm a capacidade de mudar o mundo.
No entanto, raramente mostram tudo o que nos vai na alma, infiéis tradutoras dos nossos sentimentos mais profundos. Esbarram nas palavras dos outros. Assustam-se com a intensidade com que são proferidas.
Quando escritas, afastadas do diálogo, ganham a serenidade do distanciamento, mas perdem a interação. Não estão mais lá os gestos, os olhares, os sons do interlocutor.
Entrar na cabeça do outro, uma promiscuidade indesejável, em certas ocasiões poderia trazer-nos a paz. Podermos ver como as palavras são débeis mensageiras do nosso amor, angústia, confusão. E como isso nos é comum.
Não sendo isso possível, é novamente nas palavras, que confiamos para o perdão.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Casas de banho

Há alguns dias atrás, num hotel muito conceituado, fui à casa de banho. Deparei-me com uma sala, ou vestíbulo (o que lhe quiserem chamar), de grandes dimensões, com espelhos enormes, vasos de flores, balcões compridos. Algo de déjà vu de filme americano.
O insólito ocorreu quando entrei no local a que me destinava, o que continha a sanita. Só havia, naquele espaço imenso, dois destes lugares (o fim último pelo qual, inocentemente pensava eu, a casa de banho havia sido construída). Eram dois cubículos. De tal forma que quando fechei a porta, esta passou a cerca de 2 cm da sanita, por pouco não me estropiando as pernas.
Fiquei a perceber que, pelos vistos naquele hotel, a ida à casa de banho deve ser mais uma coisa tipo social, conversa daqui, conversa dali, arranja a pintura, olha as rugas, a maquilhagem da vizinha, quem sabe até dê para beber uns copos. As necessidades fisiológicas, essas, façam-nas em casa. Não estavam à espera de conforto para uma actividade tão pouco conveniente, pois não?
Este episódio, lembrou-me outra história de casas de banho em locais finos, que ocorreu com um dos meus filhos, quando tinha uns 5 ou 6 anos. Numa marisqueira, em que por força das circunstâncias se apercebeu, pela primeira vez, que as lagostas eram um manjar muito caro, precisou de ir à casa de banho. Quando chegou o momento de usar o papel higiénico, não havia. Então ele comentou, muito indignado: “Então este restaurante tem lagostas e não tem papel higiénico?”

sexta-feira, 15 de junho de 2012

O Verão

Verão que alguém se esqueceu de encomendar o Verão. Ou então não foi pago nos 30 dias e houve lugar a devolução.
Certo é que foi necessário, retirar do armário, os dias cinzentos. Sacudir-lhes o pó, arejá-los, e lá estão de novo a uso, não é um abuso, é que os tempos estão difíceis.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

BOCEJO


Bocejou. Uma inspiração profunda que lhe permitiu preencher de ar os alvéolos colapsados que, com os movimentos respiratórios costumeiros, ficam fechados. A entrada deste oxigénio adicional fê-lo ficar mais desperto, clarificar as ideias.

Bocejou novamente. Agora espreguiçando-se, alongando os músculos tensos do pescoço e das costas. Olhou para o computador, o cérebro revigorado.

Sorriu. Todas aquelas atitudes, fisiologicamente benéficas, só eram possíveis na solidão do seu gabinete. Seriam totalmente inaceitáveis na reunião que se avizinhava!

terça-feira, 12 de junho de 2012

O soluço


Há ainda muitas coisas que não sabemos sobre a maravilhosa máquina humana. Um desses mistérios é o soluço.

Tem, nos livros, uma definição pomposa - contracção espasmódica do diafragma, acompanhada do fecho da glote, que não obedece a nenhum propósito conhecido. Que é como quem diz, o diafragma, o músculo que separa o tórax do abdómen, volta e meia contrai-se, e ninguém sabe porquê ou para quê.

Sabemos apenas que pode ser muito incómodo. Talvez por isso existam inúmeros conselhos para acabar com o soluço: um susto, beber vários goles de água sem parar, prender a respiração, comer uma colher de açúcar. Com mais ou menos floreados, por trás de muitas destas dicas está a suspensão da entrada e saída de ar. Aumentamos assim a quantidade de dióxido de carbono no organismo, um dos possíveis tratamentos médicos do soluço.

O soluço pode ser muito chato, provocando um ritmado saltitar do corpo e a emissão de sons mais ou menos desagradáveis. Nalguns casos, felizmente raros, pode até prolongar-se por horas, dias ou semanas.

E nem sabemos porque é que existe!

sábado, 9 de junho de 2012

A menopausa


Mas por que motivo a ovulação não para simplesmente, sem grande alarido, como o comboio que chegou ao fim da viagem? Um apito final, vá lá, anunciando que aquele veículo já não sai mais da estação.

Não senhor, há que fazer altas despedidas, baralhar a casa toda, como se a diminuição das hormonas fosse algo a comemorar. É todo um festival - cabelos que caem, pelos que aparecem onde não devem, dores várias, calor quando está frio, uma tristeza repentina que não se sabe de onde vem. Enfim, um sem número de sintomas. Aliás qualquer um se encaixa, tal é rol dos descritos para a menopausa.

No homem, o declínio da fertilidade é suave, e não tem necessariamente um ponto final. Biologicamente faz sentido, pois não é o homem que tem de carregar e nutrir uma nova vida, por isso pode continuar a espalhar uns quantos espermatozoides, aqui e ali, que eventualmente ainda podem vir a ser albergados por um ventre jovem e fértil.

Entende-se, então, o fim da fertilidade feminina como uma atitude razoável. Mas, convenhamos, que podia ter sido concebido de uma forma mais simpática. Acabou. Ponto. Nada de agonias lentas.


quinta-feira, 7 de junho de 2012

Lentes



Alguns passam pela vida como se esta fosse uma festa. Os convidados não agradam? Afastamo-nos até à varanda. A comida era fraquinha? Talvez possamos comer melhor noutra ocasião.

Adaptam-se às circunstâncias e, com a paz que lhes assiste, procuram o lado positivo de tudo.

Outros parecem fazer o contrário. Qualquer contratempo é motivo de desespero. A conquista não é desfrutada porque pode ser efémera. E, como se usassem algum tipo de lentes especiais, só vêem o lado negro de tudo.

Se calhar, bem fariam em mudar de lentes. 

quarta-feira, 6 de junho de 2012

A enxaqueca

Sentia-se incapaz de pensar. As palavras, os pensamentos, continuavam a arrumar-se da forma habitual, dentro da cabeça, mas nada passava cá para fora.
Articulava um discurso repetitivo, vazio, incompreensível. Toda a capacidade de comunicar reduzida a uma gaguez que o assustava. E assustava ainda mais quem o tentava ouvir.
As palavras escritas também não ajudavam. Lia. Tinha consciência de que estava a ler, que os sinais eram descodificados, mas no final nada restava do que tinha lido. Não havia significado.
Em contrapartida os sons ganhavam novas dimensões, e os odores, até aí desapercebidos, começavam a incomodar.
Nesta fase a cabeça ainda não doía. Havia as luzinhas, é certo, o campo visual desfocado, mas ausência de dor. O que tornava, o que é conhecido como enxaqueca, uma entidade ainda mais estranha.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Matutar


Não há coisa pior do que matutar. Se houvesse uma ordem de matutadores eu devia ter lá lugar cativo.

Quero adormecer, mas o cérebro não obedece. Quer fazer prevalecer a sua vontade. Resiste ao cansaço, à fisiologia do organismo. E os pensamentos enredam-me, como droga sem êxtase. Entro num círculo vicioso, não quero saber de mais nada, a ressaca virá depois.

sábado, 2 de junho de 2012

O código genético


Se há alguma coisa que se espera de um código é que seja preciso. Para confusão já chega a linguagem. Palavras iguais que querem dizer coisas diferentes. Com sorte, mudam de vestes quando são escritas, outras nem isso. E passa a ser tudo uma questão de contexto.

Parece, por isso, assaz estranho, que o código que encerra o nosso património sofra do mesmo mal. Prestar-se a confusões. Esperava-se qualquer coisa mais matemática, onde dois mais dois são quatro, e não quatro e meio, ou quase cinco.

Pois bem, o código genético tem sinónimos, e por isso foi batizado de degenerado. Palavra (e de palavras falávamos) que traduz bem o desprezo que esta constatação suscitou.

Neste código, cada três letras (um tripleto) corresponde a um bloco de construção, chamado aminoácido, o equivalente a uma palavra. Temos aproximadamente vinte, matéria-prima importante no fabrico dos seres vivos.



Ora o problema é que o mesmo bloco pode ser codificado por várias “palavras” (tripletos) diferentes. Pode mudar a terceira letra do tripleto e continuamos a produzir o mesmo bloco. Porque raio, então, esta sinonímia aparentemente descabida, num código que se pretendia preciso, e não literário?

A situação é simples. As alterações no código (mutações) são comuns, e nem sempre são reparadas a tempo. Algumas ficam e podem trazer danos. Isso poderia levar à produção de blocos errados que, numa casa, seria como colocar uma porta no lugar da janela.

Assim sendo, pode acontecer que a terceira letra do tripleto se altere, mas o bloco produzido continue a ser o mesmo, apesar da falha no sistema de reparação, graças aos benditos dos sinónimos. E é precisamente esta qualidade de código degenerado que vai permitir salvar a construção!